Flerte a distância
Dia II
Tem gente que gosta de viver sozinho e tem gente que sabe viver sozinho. Os caras que sabem falam pouco, para não parecerem ou mudos ou loucos. Sabem aproveitar a boa companhia do silêncio, quando você acaba pensando no andar da vida. Nestes momentos eles ficam saudosos, longe do tempo presente, o que dá a eles um ar superior, algo de eterno.
Bem, acho que estou puxando a sardinha pro meu lado.
Porque hoje estou só acompanhado de minha velha amiga, a cerveja. Num badalado bar de IPA’s artesanais, no meio de muito grupo de gente sorridente, a minha mesa tinha apenas um cara.
Desânimos à parte, eu estava lá porque era véspera do meu aniversário. Como tinha voltado à minha cidade natal depois de anos na megalópole paulista, minha lista de amigos era grande só no Whatsapp, o que me deixava sem opção: ou ficar em casa ou tomar um ar junto de uma cerveja. (Nada contra estacionar o dia inteiro no sofá.)
Pra não ficar doentio, pedi uma mesa de dois lugares, e ao pedir meu segundo copo, falei pro garçom que a menina que tinha convidado me deu um calote. Ele deu um sorriso amigável, tipo aqueles que a gente dá para o irmão quando ele volta com um boletim cheio de 7. Continuou servindo o povo, mas aposto que a conversa do pessoal no balcão era sobre um menino de coração partido.
Botei os fones, liguei aquela playlist de melancolismo e viajei. (Diga NÃO às drogas!)
– Posso me sentar aqui?
Minha cabeça até entortou para eu focalizar a falante. Era uma menina que já estava sentada com seus amigos quando eu cheguei. Ela estava contra um foco de luz, então no momento eu só vi a silhueta. Bem magra, com uma roupa larga, apesar do frio. Cabelos que desciam os ombros. Desliguei a música.
– Ué, pode.
Ela se acomodou e pude ver os detalhes. Olhos verdes claros, quase translúcidos. Sabe aqueles olhos quase felinos? Pois é, e junte ainda mais o queixo pontudo, e os lábios com batom vermelho-sangue. Linda e intimidante, quase uma filha de uma deusa guerreira (Um viva para as histórias de Percy Jackson).
– Pô, me deu uma dó de você… o cara que serve as bebidas falou que você convidou uma menina, mas ela deu pra trás…
– Era brincadeira.
– O quê?!
– Desculpa aí, não queria enganar ninguém, mas eu inventei essa história para o pessoal não achar esquisito um cara sozinho. Afinal, quem vem num bar pra ouvir música, né?
Ela pôs as mãos sobre a mesa. Suas unhas estavam pintadas de preto, e ela tinha uma tatuagem de coruja que saia do pulso e ia até o meio da mão.
– Ah, cara, eu sabia! Você não conseguiu me enganar!
Nessa hora chegou meu quarto copo. O rapaz me deu um sorrisinho de canto de boca.
– Cara, já descolou companhia? Hahaha! Sem ofensa, mas você estava com uma cara de cachorrinho abandonado.
– Sério?! Que vergonha… nem me dei conta…
Ele saiu dando risada, enquanto a menina dava um gole na minha bebida.
– Ei, já tá esvaziando por mim?
– Meu pagamento por te fazer companhia.
– Pra minha defesa, eu não pedi nada, pelo amor de Deus, não vai pensar que foi um plano para… eh… sabe…
– Ficar comigo?
– É! Quem poderia arriscar desse jeito? Ficar esperando uma menina de outra mesa, flertando por Wi-Fi…
Ela riu enquanto estava tomando outro gole. Engasgou e começou a tossir.
– Ai, Deus, desculpe! Tá viva ainda?
– Peraí, deixa eu dar uma respirada… cara, “flertar por Wi-Fi“, nunca tinha pensado nisso! Não é que pode dar certo?
Pessoal, eu já estava meio avoado por causa do álcool, então acho que fiquei meio vermelho. Estava escuro, mas acho que ela percebeu.
– Nossa, cara, parece que você nunca ficou com uma garota… Tem alergia?
Foi minha vez de cuspir a cerveja, enquanto estava tomando.
– Ih, foi mal… Ofendeu?
– Não, tranquilo, deixa eu só me limpar… pronto. É que não sei se rio ou choro: faz tempo que eu não namoro. Até porque eu me mudei faz dois meses, e tenho que fazer amigos novos… por isso estou aqui sozinho. Força da situação.
Ela se debruçou, chegando mais perto. Estava com uma blusa decotada, e apenas um cachecol circundando o pescoço. “Olha para o rosto, Tiago”, meu cérebro avisou.
– Então sua mentira não era tão mentira assim… você está meio abandonado, né? Quem sabe eu não posso te ajudar…
– Me apresentando pra sua turma de amigos? Acho que não. O cara que estava sentado na sua frente está me fuzilando com os olhos.
Ela se levantou, pegou a cadeira dela e colocou ao meu lado, bem colada com a minha. Assim que ela se sentou de novo, o cara da outra mesa desviou o olhar.
– Aquele saco de adubo fresco? Nada! Eu vim porque minha amiga, aquela da direita, ali, tá vendo? Ela me convidou porque estava com vergonha de vir sozinha. Agora ela tá se pegando com o cara que ela conheceu no Tinder. O rapaz da minha frente é amigo e veio só de penetra, talvez sonhando que ficaria comigo. Não sabe nem conversar, só fala de carro e dos músculos dele.
Eu pensei duas vezes antes de falar qualquer coisa, até porque a parte dos músculos não era brincadeira. Mas devia ter pensado umas cinco vezes, já que tinha muita cerveja interrompendo minhas sinapses.
– Uma garota como você merece coisa melhor, né? Você deve ter um monte de caras assim no seu pé…
– O que você quer dizer com isso? Tá me chamando de rodada?
– Não! Não foi isso que eu quis dizer…
Ela riu e puxou meu braço. Agarrou nele com as duas mãos e colou seu corpo no meu. Ela dobrou as pernas como só as mulheres sabem fazer, e seu pé começou a tocar meu joelho.
– Primeiro flertando a distância, agora se aproveitando da minha frustração, né?, ela falou rindo.
A amiga dela olhou pra nossa direção e deu uma risadinha maliciosa. Depois comentou alguma coisa na rodinha. O cara que ficou sozinho parou de disfarçar e começou a massagear os ombros como alguém que ia para uma briga. Rapaz, vou ter de desenterrar meu karatê.
– Não presta atenção nele.
Ela puxou meu queixo e meu rosto ficou a centímetros de distância do dela. Ah, aqueles olhos. Me perdi neles por um momento. Depois meu corpo tomou a noção do calor do corpo dela.
– Ele não merece atenção. Você tem que se focar no que importa.
Cheiro de maçã-verde. Os lábios vermelhos. Me afastei um pouquinho, dando uma risada.
– Eu nem sei seu nome…
– Maria Eduarda.
Ela foi chegando mais perto de novo.
– E o seu?, ela sussurrou.
– Ti…Tiago.
– Bom, Titiago, não perde o momento.
Eu a beijei. Não, ela me beijou. Sei lá. Senti o doce do batom, enquanto as mãos dela descansavam no meu peito. O seu calor, o cabelo com cheiro de melão passando carinhosamente pelos meus dedos. Um beijo longo, uma só respiração, uma nova história.
***
Minha cerveja tinha acabado. Já não ia pedir mais, porque precisava achar o caminho de casa. Do outro lado, na outra mesa, a garota de olhos verdes parecia bem entediada. O cara tentava uns assuntos aleatórios e forçava umas risadas absurdas, mas não dava resultado.
Maria Eduarda. Esse provavelmente não era o nome dela, mas não custava nomear a dona daqueles lábios vermelhos. Era realmente muito bonita.
Paguei a conta. Deixei uma gorjeta. Dei um play na música e sai com as mãos no bolso, por causa do frio cortante.
Há homens que sabem viver sozinhos, pensei. Não porque queriam; acaba sendo uma fase na vida. E esses sonham muito: quem flerta por Wi-Fi?