As sirenes se aproximando, e luz vermelha e azul no canto do olho…
– Por aqui!, falou Holmes.
Viramos em um beco minúsculo, comprido, mas estreito, guardado por um mendigo que estava sentado no chão. Tive impressão de ouvir sua voz rouca: “por aqui, por aqui”. Quantas marginais conheciam Sherlock nesse mundo?
Só fomos parando quando as sirenes diminuíram, e nosso bequinho deu abertura a uma nova ruela.
Gente, estávamos na boca do leão, no covil da onça, sacou? O governo paralelo dos bandidos: a terra de ninguém (opa! Não concorda que a frase ao lado merece estar em um roteiro de filme?)
– Uma coisa todo detetive sabe: em cada cidade do mundo há uma limitada solidariedade entre ladrões, sussurrou Holmes.
– Então, só roubamos aquele homem para entrar aqui?, falei, apoiando minhas mãos nos joelhos e tentando ritmar minha respiração.
– Elementar, meu caro jovem, disse Sherlock.
Snif, Snif. Quem nunca quis ouvir essas palavras da própria boca de Sherlock Holmes?
– O que fazemos agora? Perguntou Watson. Os homens estão nos encarando.
Uma coisa nós precisávamos aceitar: não tínhamos tipo humano de bandido. Todos ali eram tatuados, e usavam jaquetões que caberiam dois de mim. Perfeitamente poderiam ter uma .12 de cano longo cruzada nas costas. Maneiro.
Maneiro E SINISTRO.
– Ajam naturalmente e me sigam, afirmou Sherlock arrumando seu sobretudo.
Ele saiu balançando o relógio como quem sai se exibindo. O pessoal nos olhou com mais avidez ainda; qualquer um daqueles poderia nos esfolar vivos.
Depois de dar umas voltinhas (“eu não estou perdido! É só reconhecimento de terreno”, falou umas quatro vezes Sherlock), chegamos a uma lojinha de Tubaína, quase no final da ruela, que já abria uma passagem para uma rua mais movimentada.
– Estão vendo aqueles troféus ali? Murmurou o detetive inglês. E aquelas câmeras naquele ângulo? E os copos de bar alinhados naquela estante? É evidente que ele compra e revende as mercadorias.
– Mas o que tem haver uma coisa com out…
– Não pergunte. Às vezes é melhor, falou Watson.
Sherlock já se dirigia a passos rápidos ao balconista. O sujeito estava tomando uma cerveja na garrafa, com um grande hematoma no olho esquerdo. Uma cotovelada, provavelmente. Mastigava uma espécie de chicletes marrom… ou era um pedaço de carne? Credo.
– Quanto me dá por esse?”, disse Holmes, colocando o relógio no balcão e dando um peteleco nele.
– Uhn…, gargarejou o homem. Suíço, muito usado… ouro?… não, nada especial…
– Perdoe-me, senhor, mas este relógio é de ouro de 17 quilates. Comprado por leilão, provavelmente em Essex, na Inglaterra, pertencente a uma família de antiga nobreza. Dado de presente quando o homem fazia aniversário. Não, não era natalício e sim casamento. Boa família, bom trabalho, bom relacionamento com os filhos, não bebia, mas fumava ocasionalmente, começo do mês possivelmente, talvez quando fosse receber o pagamento… é, pode ser.
Uau. Nem me perguntem.
– Chefia, você matou o cara? Rugiu o balconista. Você só trabalha contratado, não é? Para saber tanto do cara assim… pô, meu, sai fora, a gente não recebe coisa de morto, não. Primeiro que a polícia fica em cima, rastreia o pacote; depois tá cheio de maluco aí tipo o Bruce Willis metendo bala no pessoal que mata quando rouba. Sai fora, leva embora isso daqui! E a gente nunca se viu, entendeu?
Holmes olhou para mim, tipo: “traduza, por favor”.
– É o seguinte, cara, falei, hoje de manhã roubaram o computador do meu amigo, logo aqui, na rua de cima. Alguém te passou alguma mercadoria?
– Você sabe que aqui eu só trabalho em silêncio, véi… se eu falar demais, o pessoal me enche de chumbo…
– O pessoal não está aqui agora, mas meu amigo está, não é? Interrompeu Watson, no espírito da coisa. Olhe bem para ele: você acha que é do tipo que perdoa se você não colabora?
O sujeito do balcão era feio. Provavelmente um assassino, cheio de cicatrizes e acostumado a viver entre gente ruim. Mas, nada, repito, nada se comparava a fleuma apática do Sherlock. O dono daquele rosto podia ajudar uma velhinha a atravessar a rua como a torturar um homem com palitos de dente.
– Tá bom, tá bom, eu falo se vocês se mandarem, sussurrou o sujeito. Nada de computador hoje, certo? Agora vai, vai, leva o serial killer daqui…
– Tuuuuudo bem. Já vamos. Obrigado! Falei eu, sorridente.
O tipo não entendeu muito, mas ainda assim consegui ouvi um suspiro de alívio enquanto saíamos.
– E então, Holmes? Soltou Watson, assim que começamos a nos aglutinar a multidão.
– Já descobri quem lhe roubou.
– Ótimo! Então vamos pegá-lo!
– Chame um carro, Watson, pediu Sherlock.
– Não, não. Vamos até meu. Ele está aqui do lado.
E lá estava, assim que dobramos a esquina, o Fox branco da mamãe.
Sentei no lugar do motorista e dei partida.
– Precisamos de um plano de ação, que envolva luta, tiros e resgates profissionais. Como vamos fazer para pegar meu computador, Sherlock?
– Simples: vamos entrar e pedir.
– Como assim?
– E eles vão simplesmente nos entregar, soltou Watson.
– Não… ela vai nos entregar.
Eu e Watson nos entreolhamos.
– OK, falei. Se você diz… vamos para onde, então?
– Para sua casa, Tiago.
* * *
E foi assim que eu descobri que minha mãe tinha mandado roubar meu computador.
– Era lógico, se encararmos os fatos, disse Sherlock meia hora depois que tínhamos resolvido todo o assunto. Já sabíamos que o bandido lhe conhecia, e que queria seus documentos. Como sabia que você estaria numa cafeteria, e ainda mais com o computendor…
– Computador.
– Isso, computador. Obrigado Watson. Retomando: como ele saberia se não fosse alguém próximo a você? Tinha que ser alguém que você conhecesse e que tivesse visto você sair. Depois juntei os dados: pessoa próxima, objeto de valor, seu aniversário chegando…
Nessa hora eu quase cuspi o refrigerante que estava tomando.
– Peraí, falei, engolindo o líquido com força. Como você sabe que meu aniversário é nesta semana?
– Simples, Tiago. As pessoas introvertidas tem um padrão de comportamento diferente: elas se isolam mais e ficam mais introvertidas quando estão perto de alguma comemoração própria. Elas como que se preparam psicologicamente para estar no foco da atenção, pelo menos durante a sua comemoração. Assim, procuram balancear com mais uma pontada de solidão. Por isso você foi a um café onde as pessoas se reúnem entre amigos ou terminam algum trabalho sem fazer nenhuma das coisas. Deduzi que seu aniversário estava perto, e acertei, considerando sua pergunta.
– Óbvio, soltou Watson.
Um sorriso levantou seu bigode.
– Óbvio para Sherlock Holmes, conclui.
– Então, eu já desconfiava que algum parente seu estava por detrás desta farsa, continuou o detetive, cruzando as pernas. Pais geralmente são frios, não fazem este tipo de coisa; você tem uma irmã, que deduzo pela ausência de palavrões em seu vocabulário e pela falta da arrogância natural de filhos únicos; provavelmente teria que ser a mãe, que é muito atenciosa, já que não deixa você sair de casa sem passar suas roupas.
– Viu, filho, até ele sabe que não é normal um jovem ser tão cuidadoso com sua roupa, gritou minha mãe da cozinha. Como você vai conseguir uma namorada se não sou eu cuidando de voc…
– MÃE! Já entendi!
– Como estava dizendo, uma mãe assim podia querer pregar uma peça em você lhe dando um computendor…
– Computador.
– Isso, Watson, computador, muito obrigado, Dando-lhe um computador novo enquanto você pensava que tinham roubado o seu. Assim, você ficaria duplamente aliviado: sabendo que o seu computador velho estava bem, e que você teria um novo para usar.
– Ela só não previu que você faria de tudo para conseguir o velho, pois todos seus documentos estavam lá.
– É, filho, desculpe a mamãe; era só uma surpresa que queria fazer pelo seu aniversário de 22 anos…
Eu fui até ela e a abracei.
– Tudo bem, mãe, não se preocupe. Só não faça mais nada igual a isso em alguma próxima vez, OK?
Ela me apertou em seus braços até meus olhos incharem e eu ficar sem ar (mães…). Depois me deu um beijo e foi novamente pra cozinha.
– Porque roubamos o pobre do homem, então? Perguntei, sentando-me no sofá.
– Eu não podia ignorar a outra teoria sem provas, Tiago, começou Sherlock. Em um mínimo de possibilidade, você havia sido vítima de um caso banal de roubo. Agora, se fosse isso, um ladrão iria querer se livrar da mercadoria o mais rápido possível, pois você o viu e correu atrás dele.
– Lógico, o modo mais rápido de se livrar de algo roubado é num estabelecimento próprio para isso, dentro do covil de bandidos, soltou Watson
– Mas como você soube que justamente iríamos parar ali?
– Há uma coisa que todos os homens criteriosos sabem: todos os pontos ficam a mais de 10 quilômetros um do outro. Se fossem muitos, a polícia acabaria descobrindo e conseguindo algum delatante que mostrasse os outros todos.
Bocejei com vontade. Afinal, foi ou não foi uma aventura?
– Essa é nossa deixa, Tiago. Muito obrigado pelo caso. Creio que ainda não tinha um desses na minha coleção.
– Onde quer que leve vocês? Para algum terminal? Quem sabe para… o porto de Santos?
– Não, não, Tiago. Alguma coisa me diz que vamos ter muitos casos para resolver por aqui. Esta grande metrópole tem uma fina teia de crimes comandada por algum homem que precisa de uma lição. Afinal, não foi para isso que viemos, Watson?
– Certamente que foi, Holmes, mas não me lembro…
– Vamos sair e ver a cidade, Watson; assim nos lembraremos de nosso propósito. Adeus, Tiago.
Sinceramente, eu não tinha ideia do que acontecia com os personagens quando passavam pela minha vida. Não sabia se voltavam a seu tempo ou ao seu mundo, e de que maneiras.
E por isso sabia o quão verdadeiro era aquele adeus.
Mas estava aberto a mais possibilidades. Enfim, desta vez, eles apareceram para me livrar de um apuro. Talvez eles ficassem perdidos pela grande São Paulo até um dia que precisassem de mim (não sei para quê). Em todo caso, com certeza, Sherlock Holmes e John Watson saberiam me encontrar.
Ah! Já ia me esquecendo de uma coisa.
Sherlock deixou a meu encargo devolver o relógio e a carteira do homem assaltado. Segundo o detetive, eu encontraria na carteira dele uma conta de luz paga naquele mesmo dia. E não é que estava lá mesmo? Deduzi isso pela cor do carro e pela calça que ele estava vestindo, me disse Holmes.
É mole?
Eu já tinha enviado por correio, sem remetente, é claro, e espero, de verdade, que ele esteja tão feliz como eu.