Ideias para quem sabe tê-las

Capítulo II

Desculpem leitores, geralmente eu me controlo. Mas o dia estava tendo emoções demais.

– Espera, garoto, como você nos conhece? A não ser que… Holmes, você se anunciou para o país inteiro?

-Tênis, tênis… ãhn, o que? Como eu poderia me anunciar para o país inteiro? É você que escreve um livro sobre meus métodos.

– Como se você não gostasse nada, Holmes.

– Pelo contrário Watson, a nobre arte da dedução não precisa de publicidade. Isso acaba atrapalhando os interesses puramente científicos. Mas ajude-me aqui… Tênis? Não tem a haver com garotas ou futuras namoradas, já que claramente ele está solteiro. Um romântico incurável, correto?

– Ei! Ei! Pausa para respiração, certo? Primeiro o tênis. Ninguém fica mais usando sapatos no domingo. Os costumes mudaram.

– Como assim? Mesmo de país a país a moda afeta 80% dos costumes, sobretudo nas vestimentas. Já lhe falei, Watson, de meu tratado sobre a psicologia da moda? E o quanto ajuda a desvendar um crime. Veja, se encontro lã de determinada cor numa cena, já determino o perfil…

– Certo. Entendi, Holmes

– Mas, Watson, creio que ainda você não compreendeu o papel da composição do teci..

Eu bati a mão na placa mais próxima. As duas cabeças se voltaram para mim.

– Ótimo, Sherlock, você é demais e sou seu fã, mas não é todo dia que minha sorte me ajuda desse jeito. Não consigo explicar para vocês exatamente como pudemos nos encontrar, mas o importante é que estamos aqui. Preciso da ajuda dos dois.

– Qual o crime?

– Meu computador foi roubado…

– Defina computador.

– Ah, não

Poxa redator, não poderia ser o Sherlock da série de TV, aquela do Benedict Cumberbach?!

– Bom, meu comput… quer dizer, um tipo de pasta, sabe, retangular, que guardava… ah… é, que guardava um documento hiper importante que devo entregar para meus professores amanhã, foi roubado.

– Simples. Chame a polícia. Não trabalhamos com roubos comuns. Vamos, Watson. Temos um café para tomar.

– Não! Esperem um pouco! Olhe, Sherlock, eu conheço seus métodos, então me ajude aqui… por que roubar o meu? Eu estava no fundo da loja, e havia muitas pessoas que trabalham nos seus comp… quer dizer, nos seus documentos e tal. O bandido teve que se arriscar a atravessar a cafeteria inteira, ser visto por todo mundo, fazer um pedido no balcão e sair por trás de mim? Para que tanto trabalho?

Holmes juntou as pontas dos dedos de cada mão.

– Ora, isto está mais interessante. Então o ladrão não estava atrás da caixa, mas do conteúdo, certo? A ponto de ignorar todos os outros. É seu costume ir tomar café fora todo domingo?

– Vou poucas vezes, sobretudo no fim de semana.

– Portanto, vamos desconsiderar um acidente. Foi algo mandado. Ele já lhe conhecia, e sabia no que você estava trabalhando, porque seu trabalho não estava à vista.

– Tudo bem, tem muito açúcar em meus polegares, não é? Ninguém trabalha com os polegares sujos.

Sherlock olhou para Watson, que tremeu o bigode.

– Uma mente que quer se libertar das trivialidades comuns, Watson! Podemos adotá-lo?

– Holmes!

– O que foi? Você queria um cachorro.

– Ei, ei, foco aqui, foco! Agradeço o elogio, mas ainda estamos com problemas.

– Correto, jovem, retomou Watson. Então sabemos que o bandido…

– Tem mais ou menos minha altura, usava um moletom cinza escuro com capuz, calçava 42, era branco e não sofria de ansiedade.

– Caro Holmes, falou Watson, olha no que transformei a humanidade…

– Porque tenho a impressão de que isto não foi um elogio?, disse Sherlock com a cabeça baixa.

– Falando a verdade: eu inventei a parte do calçado 42. Mas pensem comigo, porque um bandido gostaria de ser identificado?

– Isso, Sherlock falou enquanto estalava os dedos. Para você estar com uma grande quantidade de açúcar na mão, quer dizer que ele roubou sua pasta sem você notar. Um problema qualquer com alguém na fila.

– Pode crer.

– Então quando você se vira para sua mesa e procura seus documentos, se dá conta que algo sumiu. Aquele choque inicial. Isso tudo dá uns 10 a 15 segundos de vantagem para o bandido. O que dá a ele perfeitamente tempo para se camuflar no meio de centenas de pessoas que passam com suas pastas e bolsas. Então porque você correu atrás dele? Porque ele ficou vendo sua reação do lado de fora. Esperando.

Sherlock falou tudo isso andando em círculos. As pessoas nas lojinhas da rua começavam a olhar estranho para a gente.

– Alguma ideia, Holmes?

– Sim, duas.

– Uau, isso foi rápido.

– Vai nos dizer?, perguntou Watson.

– Não.

– Costumeiro.

– Primeiro vou testar uma delas. E vou fazer isso… agora.

E é nessas horas que eu considero minha vida muito louca.

Sherlock deu uma trombada em Watson, nada muito forte, mas que o desequilibrou. Eu já conseguia ver a frase: “ora, o que foi isso?” se formando nos lábios do parceiro, quando vi a mão de Holmes empunhando um revólver, e o dedo girando o tambor. Não consegui tempo para gritar, pois o detetive já parava um carro no meio da rua apontando a arma. O motorista somente freou, e ficou sem reação segurando o volante. Acho que o cérebro dele ainda não tinha reagido bem.

– Holmes! Berrou Watson, entredentes. O que você está fazendo?! Vamos ser presos!

Ele não deu a mínima para o que seu parceiro falava. Foi andando calmamente até o lado do motorista e mandou que ele abaixasse o vidro. O homem, careca e com um óculos gigantesco, dono de uma miopia maior ainda, o obedeceu. Talvez pensando que ele fosse um policial? Quem poderá saber?

– Senhor, isto é um assalto. Pode me passar sua carteira e seu relógio?

Sherlock falou com tanta polidez que o motorista olhou para nós, deu uma olhadinha para trás, olhou para os lados, meio que procurando uma câmera escondida. Dois homens do século passado e um garoto espinhento num assalto? 

É mais fácil ser pegadinha do Faustão.

– Senhor, retomou Holmes, se você não me passar as coisas que eu pedi, vou ser obrigado a usar isso.

Foi quando ele apontou o revólver e armou o cão. 

– Você sabe como ficaria sua anatomia após um tiro a essa distância? É uma sujeira e tanto, já que o raio da entrada da bala vai ser aumentado em…

O sujeito quase chorou nessa hora, juro. Foi uma reação rápida: nunca tinha visto ninguém passar da apatia ao desespero tão instantaneamente. 

– Cara, isso deve valer uma inscrição no Guiness.

Mesmo assim, o motorista não estava tão feliz com isso. Ele tirou o relógio, que deveria valer o mesmo que seu carro. Desembolsou a carteira e a entregou, com a mão tremendo.

– Muito obrigado pela sua cooperação, senhor. Relaxe, isto não é um roubo. Só estou pegando emprestado.

Dito isto, Sherlock deu um tiro para cima. 

Meu Deus, foi muito barulhento. 

Um som seco, alto, seguido de um cheiro de pólvora. O careca berrou como uma criancinha, o que seria no mínimo engraçado, se eu estivesse vendo de uma poltrona com pipoca. Ao vivo, naquela situação, foi muito… bizarro.

– Preparem-se para correr no 3, 2, 1…

Uma sirene de polícia soou na rua ao lado.

– Corram! Berrou Sherlock.

E mais uma vez eu estava no crossfit urbano.

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