Tem um sapato na minha cobra

Capítulo II

Como o cérebro humano é mais veloz que o corpo, né? Assim que senti o impacto, somada a freada que fez os pneus derraparem, minha cabeça virou ligeiramente para frente. Meu tronco foi sugado pela amiga do Newton (já estou ficando cansado dela) e, antes de conseguir me segurar em algo, ou esbarrar em alguém, eu já tinha registrado o corpo escamoso da grossura de um diâmetro de pneu de caminhão. A cabeçorra dela parecia virada em minha direção, como se ela escutasse os meus batimentos cardíacos naquela multidão toda, atenta como um jogador de sinuca na hora de fazer sua jogada. Mas aí trombei em seres tão perdidos como eu naquela confusão toda. A nossa salvação foi o ônibus estar razoavelmente entupido. Amorteceu o choque e nos entalou de um modo que quase não houve danos. 

Quando abri os olhos de novo, surpreso por estar ainda de pé, percebi que o motorista tinha desmaiado sobre o volante. Um pouco de sangue pingava, pelo menos de acordo com o ângulo que eu via. Talvez tivesse batido a testa e fosse necessário dar uns pontinhos. Mas algo me dizia que eu devia me preocupar com outra coisa primeiro.

Um silvo chegou aos meus ouvidos e eu tomei consciência de novo da cobra gigante do lado de fora. A cabeça dela parecia triangular, sem aquelas orelhinhas das najas. 

Ah, que bom. Nada de cobras indianas venenosas então.

Mas ela tinha presas, e bem grandes. A babinha de gato saia dali. Provavelmente era algum paralisante terrível que ela injetava para engolir suas presas com calma. Não que precisasse. Uma mordida daquela atravessava um boi inteiro, coitado.

Apesar de estar com um medo proporcional ao tamanho da Nagini ali, percebi que as pessoas não estavam gritando. Bom, elas estavam confusas e falavam desnorteadamente, mas pareciam não ver o bicho tapando a estrada. Do contrário, a confusão seria maior.

Será que eu estava louco? Talvez alguém tenha acrescentado alguns daqueles chás espirituais para atingir outro plano dimensional quando comprei uma garrafinha de suco na esquina. Aquele senhor parecia definitivamente suspeito quando vendeu 500 ml por um preço tão baratinho.

Mas, ao olhar ao redor, percebi que uma pessoa focava na cobra: minha companheira de conversa. Seus olhos estavam abertos, atentos, e uma ligeira incredulidade passava pelo seu rosto. Mas não como: “Deus, quem botou uma cobra dessa aí?”, mas sim mais puxado para: “Quem deixou ela aparecer aqui?”

Eu iria perguntar a ela se estávamos tendo uma alucinação em conjunto quando o sibilo se transformou em palavras.

– “Mortal bobo! Achou que podia fugir de mim?”

Era uma voz grave, poderosa, antiga. Olhei para a cobra e percebi, simplesmente, que eram palavras dela. Não que ela abrisse a boca e falasse. Sua língua bifurcada do tamanho da minha perna continuava se projetando, com as presas à mostra. Não sei se é normal no reino animal os dentes das cobras serem tão grandes que não cabem em sua boca, por isso ficam do lado de fora, numa versão tigre dente-de-sabre glacial; as dela ficavam raspando sua pele escamosa enquanto a cabeça balançava suavemente com o embalo do pescoço.

– “Amaru, você está quebrando as regras! Não pode atrapalhar o trânsito, lembra?”

Dessa vez, sem dúvida, foi a voz da garota. Em minha mente.

– “Você está falando com a cobra por telepatia?”

Tenho um talento natural em surpreender as pessoas. Tenho uma carinha de nerd perdido no mundo. Junte isso aos meus ombros caídos como se me encolhesse a todo o instante. Naturalmente, a ideia que as pessoas têm é que sou bem desatento e pouco perigoso.

Mas eu sempre fui uma máquina de observar. Depois de ler a coleção inteira do Sherlock Holmes e seu caro Dr. Watson, eu até me aventurava a fazer umas deduções. Vamos dizer que eu tinha uma margem de 70% de acerto, e isso deixava as pessoas desconfortáveis. O menino que não parecia saber de nada de repente tinha informações que elas não saiam contando para ninguém.

Uau. Até melhorou minha autoestima aqui.

A face da menina foi de branca a vermelha em questão de instantes, misturando sentimentos de incredulidade para medo e vice-versa. 

– “Você consegue ouvir? Você consegue vê-la?”

Sua voz saiu num sussurro que não ouvi. Mas meus meses de aprimoramento em leitura labial fizeram efeito, e apenas concordei com a cabeça.

– “Estamos mesmo falando com uma cobra gigante?”

– “A cobra gigante está bem aqui, mocinho. Por que não pergunta direto pra ela?”

Me aventurei a olhar para o nosso réptil afável e percebi que ela olhava para mim, mesmo no meio de todas aquelas pessoas. Alguns já tinham o celular na mão, chamando a emergência. 

– “Ah… então tá. Senhora cobra, você é real?”

Eu tentei projetar esse pensamento com a testa franzida.

– “Primeiro de tudo: é senhor cobra. Apesar de eu ser um ser celestial gerado na época da criação do cosmos, o corpo que me foi dado é de um macho. Eu sei, a Puma fica repetindo que, assim, não terei lugar de fala nas discussões do alto céu e tudo mais. Mas, ei? Eu me identifiquei com ele, entendeu? Além do mais, não posso mudar minha anatomia”.

– “Na verdade, você pode mudar de tamanho sim”.

A jovem falou com sinceridade, ainda um pouco atordoada atrás de mim. Ela não parecia ter se recuperado do fato de eu estar falando com o cobra na maior amizade. O que posso dizer? É meu charme.

– “Só largura e comprimento, guardiã. Você acha que não queria ter presas menores? Santo Viracocha, não tinha um material menor não?

Eu estava começando a reconhecer alguns termos. Mas a realidade de estar batendo um papo num transporte público cheio com um animal gigante me desnorteou um pouquinho.

– “Você não está louco, mortal. É uma honra conversar com um dos três grandes. Não sei por que você tem essa capacidade, mas, já que encontrou um jeito de esconder a Puma, pode ter cartas na manga que eu não imagino.”

Puma. Amaru. Viracocha. As pecinhas de Lego começavam a se encaixar.

– “Amaru, nada justifica seu comportamento. Você sabe que não pode interferir desse modo na vida mortal!”

– “Guardiã, esse ser forjado nos moldes do mal levou a Puma. Ela está desaparecida. Sabe que isso significa?”

– “Mais trabalho pra você, né?”, falou minha amiga telepaticamente, revirando os olhos.

– “Exatamente! Estou mapeando os locais de proteção da Puma, atendendo pedidos, fazendo hora extra sem receber uma honra a mais! E o pior é que não tive tempo de terminar a quarta temporada do The good place! Não pode haver desgraça maior!”

Eu sabia que a série era boa demais mesmo. Não pude deixar de sentir pena do meu novo amigo.

– “Além disso, tem algo sobre a destruição do mundo mortal quando os guardiões se desalinhassem e etc. Mas nada, repito, nada é pior que perder o Chidi e a Eleanor achando soluções”.

Minha mente estava a mil. Ideias passavam por aqui e por ali, pulsavam como as sementes do Bulbassar na primavera.

– Peraí, senhor cobra; alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?”

Ele sibilou um pouquinho em minha mente, o que, devo dizer, não era necessário.

– “Você mente como um filhote de furão. Deveria ter vergonha.”

– “Amaru, você acha que um menino como esse poderia machucar a Pu?

Acho que ela não lembrou que eu podia ouvir também.

– “Essas mãos nunca pegaram em armas na vida! Você sabe que posso reconhecer um guerreiro de longe, Amaru”.

– “Eu sei jogar combate muito bem”, falei, vermelho.

O olhar de piedade da menina me deixou ainda mais constrangido.

– “Olha como ele é doce! Não poderia ser um ladrão e sequestrador”.

Ela estava me elogiando? Será que gostava de mim?

– “Sabe, cara, quando estamos mentalmente conversando com alguém, qualquer pensamento seu, com muita carga de atenção, é transmitido”, falou ela com um suspiro.

Ops.

– “Realmente, esse macho em época de acasalamento não parece perigoso o suficiente. Mas meus olhos não me enganam, guardiã. Eu o vi na noite do desaparecimento.”

– “Com licença, senhor cobra: quando foi isso?”

– “Há uns três dias. Venho rastreando seu cheiro desde então”

– “Aha! Então não pode ser eu! Cheguei no Peru faz só dois dias!” 

Outro silvo de cobra, outro suspiro da moça.

– “Mentiroso! Desça daí para eu aplicar meu veneno da verdade em seu corpo!”

– “Nada de soro nele, você vê alguma estrutura para aguentar sua mordida?”, afirmou a garota. “E depois, eu acredito nele. Está livre do odor antigo. Não deve ter passado pelas cidades gloriosas.”

– “Guardiã, você sabe como a Puma era descuidada. Ela passeia muito em áreas livres. Além do mais, quando recebi seu pedido de socorro, rastreei seu local de desaparecimento. Ela estava na Selva.”

Um tremor passou pela nossa mente, vindo da serpente. O que podia ser tão ruim a ponto de assustar um animal poderoso como ela?

– “Em todo caso, vou invadir esse ônibus. Preciso de respostas e já!”

– “Amaru, você sabe que não posso permitir que machuque as pessoas.”

Um silêncio hostil se estabeleceu na nossa comunicação mental.

– “Guardiã, você sabe a irresponsabilidade de me impedir de procurar.”

– “Então vamos resolver como seres adultos: diálogo”

Papos assim dão certo com cobras gigantes?

– “Eu quero o mortal, e agora.”

Aparentemente não.

Imediatamente, começou a diminuir de tamanho. Ela planejava invadir o ônibus. Com ela já fora de vista, senti um calafrio de medo passar pelo corpo.

– “Venha, preciso tirar você daqui”

A moça me puxou para fora, pelas portas que já tinham sido arrancadas do ônibus através das alavancas de emergência. 

Eu senti seu toque quente em meu braço, e fiquei admirado em como podia ficar romantizando o momento apesar do perigo.

– “Você sabe que eu estou completamente perdido nesse negócio todo, né? Ainda não posso abandonar a ideia de que isso é tudo obra da minha imaginação”.

Ela não falou nada. Ficou preocupada, apenas me puxando para uma praça que havia ali perto. Lima é cheio de flores e canteiros, que são todos bem cuidados. Ficamos de pé, um ao lado do outro, cercados apenas de grama e alguns pingos-de-ouro.

Uma vibração ocorreu em nossa frente, e a cobra começou a crescer de novo. Não ficou com seus dez metros. Parecia uma sucuri normal agora. O que não foi suficiente para me fazer relaxar.

– “Ótimo. Posso tê-lo à minha disposição.”

– “Amaru: este é o último aviso. Sou uma Antisuyu, guardiã da cultura inca, uma filha do sol. Não permitirei que você ataque um inocente.”

Quando olhei para minha protetora, percebi que estava com um arco nas mãos, e flechas em uma espécie de aljava marrom em suas costas. Tinha um ar sério, perigoso.

– “Ousa desafiar um dos Grandes, guardiã?”

– “Estou cumprindo meu dever, Amaru.”

A cobra sibilou, e abriu sua boca, ostentando ainda mais suas presas.

– “Vejamos quem é o mais rápido então.”

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