Um ônibus sujo de baba

Capítulo I

O transporte público é uma espécie de multiplicador de realidades alternativas.

Cara, nele acontecem coisas que poderiam, literalmente, criar todo um universo novo.

Você, primeiramente, é sugado para um estado zen de pensamento. Pode ser uma teoria evolutiva nova que deixaria Darwin no chinelo, ou ainda um novo báskara com várias incógnitas, feito uma sopa de letrinhas, ou também quantas roupas pretas você tem no armário ou se cortará as unhas do pé nesta semana: a única regra que existe é não se demorar sobre um assunto só. A paisagem que passa veloz (ou não) permite essa sensação gostosa de divagação irresponsável.

Então, do nada, você é trazido à tona para a realidade. Todos seus poros vibram quando, do outro lado da rua, esperando para cruzar uma faixa de pedestres, você vê o crush dos seus sonhos. E, naquele pequeno momento eterno, os olhares se cruzam. Ninguém sorri, pois tem medo de estragar a sintonia. Não sei o porquê, mas a gente tem certeza de que aquela era a pessoa certa. O segundo infinito se escoa (show de expressão, hein?), e, com um baque, aquilo se torna apenas uma lembrança, uma saudade do que não se viveu ainda (para direitos autorais, vide net).

Naquele dia chuvoso não foi diferente. Por mais que eu estivesse em outro país, gozando de merecidas férias de um estudante de faculdade estressado, o transporte coletivo não me deixou na mão.

Estava de pé, “Tiagando” como só eu sei fazer (acho que estava compondo uma história sobre viagem no tempo depois da morte, coisas assim), quando, sem motivo e com preguiça, meus olhos se dirigiram à catraca do ônibus. E lá estava uma das meninas mais bonitas que eu já tinha visto.

Ah, não! De novo essa história de romance não!

Ah, sim, leitor; ah, sim.

Alguns céticos já devem estar com vontade de largar o livro ali na livraria mesmo. “A gente sofre muito quando ama”, “as coisas não são assim, a gente se ilude fácil”, e todos os novos clichês melancólicos sobre a paixão. E você, que está lendo isso tomando aquela xícara de cappuccino quente com canela polvilhada com gosto, fazendo um biquinho de incredulidade, concorda. Afinal, o que alguém de 21 anos sabe sobre o amor? 

Acho que não muito, para dizer a verdade.

A primeira vez que me senti estranho na presença de uma menina foi na 1ª série. Eu tinha acabado de me mudar para lá, e fiquei em meio a um grupinho de alunos que se conheciam desde o maternal. E um dos meninos, o mais charmoso, começou a se mostrar o macho alfa da situação. Respondi à altura, mostrando toda minha inteligência ao criar um avião com a borracha e os lápis do meu estojo. Então, seguro com minha conquista, me voltei para uma das meninas. Ela estava sorrindo de um jeito lindo. 

Meu estômago borbulhou. O que era aquilo? Diarreia matinal?

Provavelmente não era amor ou paixão, coisas pouco existentes no vocabulário de uma criança. Mas era o gosto de ser notado, de saber que você faz bem alguma coisa que atrai a atenção de alguém. Mas, apesar de tudo, é minha primeira lembrança de ternura envolvendo meninas que não eram minhas parentes (não estou contando com você, Amanda, quando me bateu no pré. Aquilo, definitivamente, não foi legal).

Mas foi no quinto ano que tudo mudou. Naquela época já havia algumas ideiazinhas quentes passeando pela mente do Tiaguinho, e talvez foram os maus exemplos que assisti na maioria dos filmes que me fez assim: parecia que nunca se era bom o suficiente para as meninas notarem; sempre havia um melhor, um mais forte, um mais inteligente, um mais corajoso (leia-se: briguento). 

Talvez eu tenha gostado das garotas erradas. O mais provável era que elas estivessem num processo de descoberta também e ficassem com os valentões mais sujos porque isso dava popularidade, status. Não sei. Todos estávamos perdidos, isso é um fato.

Daí em diante, para completar a situação, não havia só o passeio pelo jardim dos sonhos com a menina querida, a imaginação cor-de-rosa e doce, mas um desejo intenso de contato. Para quê, eu não sabia bem. A gente vivia ouvindo que o contato era bom demais, que corpos desenvolvidos eram maravilhosos, e como entrar na fase da adolescência era mágico. Ainda mais que tinha em casa um exemplo de relacionamento vivo: minha irmã fazendo seus 20 anos, a todo vapor na faculdade, chegando tarde, levando rapazes diferentes para casa quando a nossa mãe saia. 

Se eu me tornei meio apático com tudo isso? Um pouco. Tinha ficado meio bravo por não conseguir chegar perto da menina que eu gostava, na sala; também decepcionado porque parecia tão fácil para minha irmã. Onde eu estava errando? Pensando bem, a gente nunca encontra uma resposta para essa pergunta.

O ensino médio me ensinou a conhecer os limites da maldade humana. Se tivesse um botão de “desistir”, eu teria sentado nele. E, depois de formado, com um ano sabático para eu me recompor psicologicamente, fiz o vestibular e passei em engenharia. 

Precisamos ser sinceros: a faculdade é bem melhor. Há uma porção de adultos que entram em sala que não estão nem aí para uma fofoquinha ou apelido besta; os alunos estão geralmente atarefados com quilos de páginas para ler em livros completamente díspares, e os professores já tem uma atitude menos zelosa com a nossa atenção (“prova na semana que vem, mas quem quiser sair, fique a vontade”). Se isto é bom ou ruim? Não sou eu quem vai responder.

Um ano em engenharia civil trinca os cérebros mais saudáveis. Por isso, mais calmo com relação ao trato pessoal entre alunos na sala, mas mais desgastado da quantidade de estudo, ganhei, junto com minha irmã e seu namorado (já estavam a um ano e meio juntos) uma viagem rumo ao Peru. Minha madrinha era de lá, e tínhamos uma residência confortável nos arredores de Lima para ficar. 

Ufa. Depois dessa viagem toda pelas minhas decepções, voltamos ao ônibus (Não falei que era fácil divagar?)

Fiz com a sétima maravilha ambulante da natureza aquele contato telepático mútuo, como se toda a história das nossas vidas nos levasse ali, para aquele instante; e que, a partir daquilo, nada mais voltaria a ser igual.

E eu não tinha ideia de como aquilo seria verdade.

Eu não tive coragem de cortar o contato. Os cantos de sua boca tremeram, mas ela baixou o olhar. Percebendo o quão hipnotizado eu tinha ficado, virei meu corpo para a janela do ônibus, sentindo, como por instinto, ela passando pelo meu braço rumo a um banco vazio alguns metros atrás de mim. 

A garota encantadora vestia uma espécie de poncho sobre o corpo pequeno, tornando-o ainda menor. Seu cabelo preto como a escuridão estava apertado num coque firme que repousava sobre sua cabeça, num estilo bailarina. Era esguia, pela silhueta que notei, e carregava uma bolsa preta de apenas uma alça, que se cruzava sobre o peito. Era morena, com os olhos levemente puxados, e eu tive a certeza de que sangue inca corria puro por aquelas veias.

Como sabia disso? Minha matéria favorita sempre foi História, e, de tudo, o que mais me chamava atenção eram as civilizações antigas. O Egito, a Grécia, os Romanos, todos eles me encantavam. E não era menos com os impérios ameríndios (palavra bonita que aprendi no ano passado, acreditem). E, como corria, lá de longe, apenas umas gotinhas de sangue peruano em minhas veias, me sentia superligado aos incas. A menina tinha as feições das figuras que eu tanto estudei; até mesmo a sua roupa mostrava isso. Seu olhar, porém, diferente daqueles imortalizados por fotógrafos que viajavam pelas pequenas aldeias nas costas dos Andes, era tenso, sofrido, um pouco preocupado. Outra coisa que me chamou atenção foi o problema em determinar sua idade; algo me dizia que ela era mais velha que eu, ao mesmo tempo que parecia nova e cheia daquele ar de mocinha começando a frequentar rodinhas de universidade.

Ela se sentou e puxou a alça da bolsa sobre o ombro, que já escorregava. Não puxou celular, ou livro; apenas ficou ali, parada, pensando.

Nesse momento, eu quis falar com ela. Começar um papo, não perder essa oportunidade, não deixar de tentar estabelecer a mágica que nasceu quando nos olhamos. Minha consciência, contudo, foi mais autoritária que minha imaginação: fiquei com um certo medo de fazer papel de bobo, enquanto repetia para mim mesmo que um encontro desse num transporte abarrotado de pessoas não gerava nada além de dor de cabeça e talvez um mau cheiro por não usar desodorante o suficiente. 

O motorista escolheu essa exata hora onde eu desistia para furar um semáforo que ia se fechar. Fez o motor gemer e arrancou com velocidade, fazendo todos serem sugados pela inércia que agia; minha mão não alcançou a barra a tempo, e meu quadril foi jogado para trás com tudo, fazendo com que eu recuasse, torto e bamboleando, perdendo o equilíbrio e caindo no colo de uma pessoa.

E justamente de quem?

Yeah. Da variável da minha equação da felicidade.

– “Droga de matemática”, bufei, enquanto tentava me levantar com rapidez.

– “Lo siento”, disse, na minha melhor versão de espanhol, tentando encontrar autocontrole para não ficar vermelho como um pimentão. “Yo te la machuquei?”

Ela era ainda mais linda perto. Em sua orelha direita, havia um brinco em formato de pingente, com pedrinhas azuis que não reluziam.

– “No hay problema”, falou a menina com evidente vergonha.

Olhei ao redor de mim e vi muitas pessoas reclamando do motorista também. Até alguns palavrões esporádicos, eu acho.

– “Caramba. Esto chofer és una verguenza para la nación

Ela riu. Pode ter sido da brincadeira ou do meu péssimo modo de falar seu idioma.

– “É… como vocês chamam no Brasil mesmo? Ah, um barbeiro”

Tudo isso dito em português com um leve sotaque castelhano gostoso de ouvir.

Evidentemente, fiquei ainda mais animado com essa interação.

– “Ué, você fala português?”

– “Eu morei em São Paulo por dois anos. A gente nunca perde o jeito”.

Ai, meu Deus. Ela morou na mesma cidade que eu durante todo esse tempo. Onde estava escrito que iríamos nos encontrar só naquele momento? Quero botar uns P.S’s para exponenciar nossas chances de ficar juntos.

– “Que legal! Mas sua família é daqui de Lima, certo?”

– “Na verdade, somos de Cusco. Dos vales sagrados, das antigas vilas incas, como é conhecido por lá. Isso significa casas de barro e taipa batida, além de muitos insetos no verão.”

Ela sorriu com isso. Os dentes eram ligeiramente amarelados, mas o formato dos lábios ficava esplêndido naquele rostinho. Havia um fio solto de cabelo que saltava sobre sua testa.

– “Hehe, não parece ser o melhor lugar do mundo pra se morar.”

– “Ah, a gente acaba se acostumando.”

Esperei alguma outra informação. Ela apenas desviou o olhar, concentrando-se em alisar sua roupa larga. 

Fiquei desesperado para continuar nossa conversa, mas comecei a perceber que qualquer pergunta já seria uma certa invasão de privacidade que podia fechar as oportunidades de vez. Se eu perguntasse demais, só obteria respostas vagas, e um sincero olhar de “já chega, né?”

– “Está passeando hoje?”

– “Ah, bem, nem tanto. Mais uma visita rotineira a alguns amigos”.

– “Que legal.”

Nada muito estimulador. 

Com os segundos se amontoando entre a gente, e sem mais ideias de como prosseguir com aquilo, um pequeno pavor começou a pesar na minha barriga. Então seria aquilo? Não parecia muito mais quando nos olhamos, logo ao entrar no ônibus?

Ainda bem que a cobra que bateu no ônibus quebrou o gelo por mim.

Ops. Corrigindo. A cobra com mais de dez metros que tinha os olhos vermelhos e as presas pingando algo que parecia babinha de gato.

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