Fuma no horizonte

Capítulo III

Não era à toa que Dastan seria conhecido como o Poeta das Colinas. Pontepoti se situava sobre uma série de planaltos acima ainda da cidade das lebres, Fortnascar, e seus visitantes afirmavam que era mesmo difícil conseguir respirar perto do marco da vila, situado a duas léguas do grande lago. 

O jovem músico se surpreendeu enquanto caminhava, ora subindo, ora descendo, por entre as veredas que o levariam ao primeiro povoado próximo de Pontepoti. Mesmo cansado dos dois dias de viagem que se seguiram logo após o encontro com Porvir, uma raposa que de raposa pouco tinha, ele ainda caminhava compondo sonetos às macieiras que via. Segundo seu pai, contador de histórias como ele Dastan também seria, as macieiras foram um presente do primeiro cão pastor, senhor dos cães de Pontepoti. Herásio, o nome do grande canino, foi chamado por um simples cuidador de ovelhas, que pedia que apagasse um pouco o brilho do sol, já que o calor o estava matando quando ia tomar conta de seu rebanho. Herásio, de pelagem sedosa e farta constituição, disse que não poderia mexer na grande estrela, porque não era seu domínio, e sim do perigoso falcão. “Mas a sábia ave não é clemente; sua justiça o limita”, falou o cão pastor. “Como pastoreio a terra e os homens que a pisam, resolverei o problema de meu jeito”. E Herásio, com um potente uivo, fez com que crescessem enormes árvores, que com uma potente copa, faziam sombras em porções na terra. “Muito obrigado, magnífico Herásio, o maior dos caninos e mestre dos pastores. Ofereço-te, como contribuição, minha amizade e serventia; eu e toda minha casa, meus filhos e os filhos dos meus filhos depois de mim”. Herásio gostou da humildade do pastor, e ficou feliz em fazer aliança com seus protegidos. “Porque tivestes gratidão, a mais frágil das virtudes do homem, eu selarei minha aliança contigo. A partir de hoje, os cães e os homens terão uma amizade eterna, impossível de ser desfeita a não ser pela morte; e pouco haverá de mais fiel que um cão e seu humano”. O pastor se prostrou para Herásio, que tinha mais um presente: “também farei com que, de cada sombra que lhes dei, floresça frutos saborosos, e que conterão a água que matará suas sedes”. A partir daí, toda região em torno do Grande Carvalho também ficou conhecida como a terra das macieiras, porque Herásio, o grande canino, líder de todos os pastores, assim o quis. Ou pelo menos era o que o pai de Dastan lhe contava. “Vocês podem não acreditar”, narrava ele, “mas foi assim”.

Dastan olhou mais uma vez o céu e mediu seu progresso. Nos dias anteriores, ele andava o suficiente para que seus joelhos tremessem até o sol estar em seu pico. Parava e fazia a refeição com as bolachas de sua mãe, que podiam sobreviver a um cerco de sete dias. Era a vantagem da cozinha Pontepotiana: poucos podiam se gabar da especialidade de uma comida duradoura. 

Mas quando consultou o céu para montar seu pequeno acampamento, divisou ao longe, como o toque de tambor nos dias de festa, um punhado de fumaça que se erguia. Sabia que a fumaça preta não era bom sinal: provavelmente não era queimada de madeira, e sim de algum metal. Não era o melhor dos sinais para ser recebido em uma aldeia.

Isto porque Dastan era filho de guerras, que aconteciam de sempre em sempre pelas terras altas do Grande Carvalho. Acostumado, porém, a rivalizar através da música, seu pai não o ensinou a empunhar uma espada. Ele praticara, é verdade, com o arco de sua mãe; mas cedo entendeu que o arco de batalha tinha uma corda diferente do de sua cítara. Não era o pior dos atiradores de Pontepoti, mas só porque sua irmã Estela ainda não tinha força no braço para atirar.

Mas guerra é sempre guerra. Sente-se o doce cheiro do sangue no ar, um mau presságio que afasta a benevolência dos grandes. E Dastan tinha o olfato apurado: rapidamente chegou a ele o odor nauseabundo que indicava o combate. 

“Estarei em perigo?”

Porvir fungou, subindo em seu ombro e escondendo seu focinho na gola da camisa de Dastan.

― Eu sei, meu amigo, eu sei.

Porvir fez um barulho e arrepiou os pelos. Com certeza ouvira algo. Seriam os cavaleiros adamantinos? Só os vira uma vez: sua armadura esverdeada brilhando ao sol, e as espadas de aço preto pulando em suas cinturas, enquanto seus cavalos, todos enfeitados de prata, corriam pelos campos abaixo de Pontepoti. Eles eram protetores do Grande Carvalho, mas isto não bastava para acalmar o coração do pai de Dastan. “E se meu pai teme algo, é porque é digno de ser temido”, pensava o jovem.

Dastan viu um amontoado de hera seca alta que crescia na beira do caminho. Rápida e silenciosamente, acompanhado de Porvir, deitou-se no chão e rolou para lá, cobrindo o rosto com o capuz de sua capa de viagem. Ela fora um presente de seu pai, que herdara de seu tio-avô, Mona, o solitário, pois não tivera família e se entregara com todas as suas forças à caça. A capa tinha o padrão das folhagens de toda a colina de Pontepoti, e, para um apressado caminhante, se o usuário não se mexesse, era como se não houvesse ninguém. E Dastan sabia ficar parado; a disciplina de dedilhar um instrumento o fazia senhor de si, e mesmo os espirros ele conseguia conter.

Mas não era um cavaleiro. Nem sequer um homem alto ou forte. Era uma criança, do tamanho da irmã de Dastan. Ele parecia assustado, e corria loucamente em direção contrária a que o poeta músico vinha descendo. Dastan mal pode ver em sua cintura um pergaminho cor de arroz velho, daqueles que sua mãe esquecia no fundo do saco de couro que guardava os mantimentos no celeiro; e o poeta das colinas entendeu que ele era um mensageiro de última hora. Ele deveria estar correndo em direção à fortaleza dos cavaleiros adamantinos mais próxima, que Dastan sabia ficar a um tiro de besta dali. E se havia uma mensagem sendo entregue, havia algo de errado com a vila.

Dastan poderia ter interceptado o menino, pedindo que este se explicasse. Assim, teria se desviado do caminho do perigo e continuaria em frente. Mas não. Dastan saiu de casa para ser um herói, conclamar os grandes feitos e ser o primeiro dos Pontepotianos a ganhar destaque nas baladas de além-lago; por isso, ele teve uma ideia melhor.

Como suspeitava, logo após o menino sumir de vista, Dastan ouviu passos pesados. Era o perseguidor. Se ele conseguisse pôr a mão no menino, a resistência nunca chegaria, a ordem correria o risco de ser invertida. Então Dastan sabia o que precisava fazer: ganhar tempo. E poucos eram tão incômodos quanto o poeta das colinas.

O jovem se levantou, puxou a cítara do saco surrado que a carregava, e postou-se encostado em uma das árvores frutíferas da campina. Agradeceu silenciosamente a Herásio pela sombra, como seu pai sempre lhe ensinara, terminando a prece logo que saia de dentro da mata um enorme carniceiro brandindo sua faca de curtir peles para abrir a trilha que vinha seguindo.

Seus olhinhos miúdos demoraram em focalizar Dastan. A careca transpirava abundantemente, e o fôlego lhe escapava como as formigas fogem dos tamanduás, enormes máquinas dotadas de línguas que esticavam. “A natureza sabia ser cruel quando queria”, pensou Dastan de última hora.

― Que o Grande Carvalho lance sua sombra sobre ti, amigo. Aqui é o caminho para a vila de Subsoles?

O carniceiro não respondeu. A não ser que responder seja grunhir. Levantando seu instrumento de morte, partiu para cima de Dastan com ferocidade, que não esperava uma atitude assim. Pelo menos não de um humano. 

― Espera!

Mas os olhos do atacante não pareciam conter vida inteligente. Se sobrevivesse, Dastan cantaria essa história como se tivesse topado com um trasgo. Isto se ele fosse rápido o suficiente para desviar da enorme facada que aquele suposto monstro das histórias de Pontepoti vinha desferindo em sua direção.

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