Até os monstros são patrocinados

Capítulo VIII

Quando uma guerreira lendária e poderosa, com sangue nos olhos, fala assim, você fica quieto, e com uma cara neutra. Se reclamar ou sorrir, é pior.

– “Com quantos pontos terminam o jogo, Pedro?”

Ele apertou o rosto, e linhas o marcando.

– “Senão me engano, nesta terra, são 21 pontos.”

Como assim, nesta terra? Onde estamos, afinal?

– “Mas são pontos exatos. Se passarmos do número, os pontos decrescem.”

– “Não entendi.”

Perguntei com sinceridade, porque eu precisaria não cometer mais outro erro de principiante.

– “Vamos dizer que você fez 19 pontos. Se você fizer uma cesta de 3 pontos, você deveria ir para 22. Como não pode passar de 21, você deveria voltar um ponto: 20, 21, 20. Entendeu?”

Fiz que sim com a cabeça, enquanto engolia em seco. Fazer pontos exatos não era o meu forte no basquete.

Eu era um bom armador, mas nada extraordinário. Tudo dependeria de quem seria o time inimigo. 

– “Que entre a equipe da casa”.

Para uma velhinha meio decrépita, sua voz era bem projetada. Poderia ter se tornado uma ótima radialista.

Carol e Pedro estavam apreensivos. Eu entendi o porquê quando o terremoto começou.

Eram passos, pessoal, um tropel de três seres, digamos assim, porque não eram humanos. Cada um deles tinha chifres na testa, além de serem cobertos não de pele, mas uma espécie de placa de couro que parecia dura, firme, impossível de romper. Quem fosse guerrear com eles já perdia esperança no primeiro momento (ei, espera. Éramos nós!)

A única coisa que me animou foi o fato de usarem roupas de basquete: a básica camiseta regata, os shorts curtos e os tênis de cano alto. Vou te dizer: para jogadores patrocinados pelo inferno 1.0, eles estavam bem moderninhos. Aquele Nike Air ali nunca vestiria um pé pobre como o meu. Isso indicava que seria um jogo mesmo, com todas as regras básicas, sobretudo aquela que fica bem no comecinho: “nada de contusões sérias”. Eu esperava sinceramente que eles soubessem que decapitação, esmagamento com as mãos e petelecos com dedos de urso se encaixavam no termo “contusão séria”.

― “Todos a postos. Não vai haver disputa de bola. Não me parece… justo”.

A vovó do mal estava consciente de nossa pequenez diante dos ogros ali. Posso chamá-los de ogros? Já não sei, a generalização de raças hoje em dia é meio criminosa.

― “A bola começa com os de fora. Uma prova de minha benevolência”.

Eu não era lento em entender as coisas, pelo menos não normalmente. Mas talvez o fato de ter ido para uma terra onde ninguém dispute um jogo de basquete com seres altamente mortíferos tenha me deixado meio desatento. E quando eu percebi o sorriso sarcástico na cara da vovó radialista era tarde demais: Pedro havia passado a bola para mim, e um deles, aquele que tinha um 7 na camiseta, veio como uma bola de boliche em minha direção, derrubando esse frágil pino que era meu corpo. Literalmente voei uns três metros para trás, aterrissando de bunda. Fez um som ligeiramente comprimido, como quando alguém soca uma almofada no sofá.

― “Tiago, acorda!”

Tirando a dor no peito e o enorme desconforto do meu traseiro, eu parecia estar bem. Mas até eu tomar coragem de levantar, o trio chifrudo fez sua primeira cesta.

― “2 a 0 para o time da casa”. 

E tão contrariamente ao silêncio que se fazia há um minuto, um urro explodiu das arquibancadas. Eu pude contar uma ala de humanos assistindo ao jogo como se fosse seu time preferido disputando a NBA, sem parecer se importar com as chamas dançantes que decoravam as paredes do estádio, ou ainda com os esqueletos pendurados nas vigas.

― “Tiago, precisamos de você aqui conosco, ok?”

Eu tentei focalizar Pedro que segurava meus ombros com força.

― “Você dá conta disso tudo, beleza? Prometo que explico tudo o que quiser saber mais tarde; mas primeiro temos que ganhar esse jogo”.

Bom, a explicação de tudo parecia ser uma coisa altamente degustável. Então era a hora de botar para quebrar, pessoal. Lembrei-me daquela frase mítica: “até onde você iria em busca da verdade?” de algum filme meio policial, meio drama, clichê que só, mas que se enquadrava bem aqui. A única forma de eu descobrir algo era vencendo. Isso e o “a única forma de você ficar vivo é vencendo” de antes se somaram para me dar um pouco de fogo nos olhos. (não literalmente, pessoal, meu Deus, hein?)

Carol já estava com a bola atrás da linha de fundo, pronta para começar. Levantei-me e mexi um pouco os membros, para fazer voltar a circulação sanguínea. Era a hora do basquete.

A moça se provou tão rápida com a bola quanto com seu arco. Olhou para Pedro que estava do outro lado da quadra, fez menção de que ia passar para ele e, no último segundo, fez uma finta com o braço para quicar a bola no chão em minha direção. Eu percebi mais rápido que meu infernal marcador (o que não é uma surpresa, dado o tamanhão dele), e me pus na frente, recebendo a bola com o braço direito. Imediatamente a bati no chão, dando início a minha caminhada circular. 

Vocês tinham que ver. Foi no mínimo épico. O segundo deles veio como um touro desgovernado, quase amassando o chão de fúria, e foi driblado tão lindamente que eu pensei em tirar sarro. Mas aí meu bom-senso aflorou e eu me lembrei de que ele podia literalmente me comer. Aqueles caninos ali não deviam estar de enfeite não.

Logo após isso, consegui vislumbrar de canto de olho o terceiro que se posicionava ao meu lado para dar um toco no meu arremesso. Considerando seu tamanho, ele não teria nenhuma dificuldade, mas ele não sabia que eu sabia que ele não sabia da minha tática (carambola, que frase confusa!): dobrei os joelhos para o pulo, mas ao invés de sair do chão, mantive a base firme e quiquei a bola até Carol, que estava a uns 20 graus do centro do garrafão. Ela pegou a bola com facilidade e, enquanto meu adversário pulava para me bloquear, fora do ângulo de arremesso dela, a jovem fez uma linda cesta de fora da linha.

― “3 a 2 para o time de fora da casa!”

A entidade colorida estava animada quando narrou isso, como se pouco importasse quem ganhasse, valendo apenas o prazer de ver jogadas espetaculares como a nossa.

― “Aí, Tiago, mandou bem!”

Carol estava feliz com a nossa cesta. O sorriso que alargou seu rosto tocou de modo especial no meu coração. E eu sabia que uma coisa eu queria fazer nessa vida: espalhar esse sorriso por todos os lados, para maravilhamento de toda a humanidade.

― “Bola dos cracos”.

Não sei se o Pedro era um cara confiável com gírias e expressões: o “cracos” que ele me anunciou como sendo o nome do time, ou o nome das criaturas, ou o nome da raça das criaturas, ou o nome do planeta das criaturas, podia ser respeitoso ou não. Por isso, não o usei de volta, só mandei aquele onipotente joinha que funciona em qualquer lugar do cosmos (É o que minha irmã sempre me ensinou: se está em dúvida, mande um joia com o polegar bem levantado e tudo se resolverá).

Quando, porém, eu achei que seria fácil ganhar deles, eu descubro que é impossível roubar a bola quando eles estão jogando. Razões várias: os dois metros e pouco, a força monumental e gigantesca, a falta de sentimento ou empatia para com os pequeninos. Aqueles caras sabiam o que queriam mesmo: ter um jantar onde o prato principal fôssemos nós. 

― “4 a 3 para o time da casa”, anunciou a juíza improvisada.

― “Tempo!”

O berro de Carol foi alto o suficiente para cobrir a multidão que conversava e comprava uma espécie de pipoca dos vendedores fantasmagóricos que circulavam por ali. Eu digo espécie de, porque ela parecia mais um monte de farelo, alpiste, castanha de caju em pó, algo assim.

Nos reunimos em volta da moça, que estava com uma gota de suor escorrendo pela lateral do rosto, fruto do cabelo preso num coque apertado no alto da cabeça. O olhar de determinação parecia duelar com o leve tremelicar dos joelhos. Eu estava com roupas do time que a vovó malvada tinha me dado, como o do Pedro, com as cores brancas e azuis, bem diferente do tom de vermelho que cercava o ambiente; mas Carol não, ela não foi vestida misticamente por ninguém. O resultado é que ela estava com o pijama dela com o qual saiu do banho: uma calça branca com passarinhos desenhados que só ia até a altura da canela. Os pés novamente descalços, embora eu achasse que Pacha Mama não a ajudaria nos domínios da grande avó.  

― “Olha, a gente viu que não dá para parar nossos adversários”, disse ela, respirando rápido, sem fôlego. “Cada ponto nosso equivale a um ponto deles, é certo. Agora precisamos calcular se conseguimos chegar ao 21 primeiro que eles”.

― “Eles não me parecem bom jogadores, apesar do tamanho e da força bruta”, falei, “digo isso porque, em algum momento, eles precisarão fazer uma cesta de três pontos”.

Pedro concordou comigo.

― “Eu já vi os irmãos cracos jogando… e não, não me pergunta quando, Tiago; foca aqui no jogo! Então, eles se garantem com todas as cestas de dois, e, em algum momento, tentam a de longe”.

― “Bom, se for assim, eles têm ainda sete cestas de 2 e mais uma de 3”.

A matemática rápida de Carol me surpreendeu. 

― “Melhor da turma por quatro anos seguidos”, disse ela, me dando um soquinho no ombro.

Doeu.

― “E nós, de quanto precisamos?”

Ela olhou por cima do ombro, calculando.

― “Já temos uma de 3. Precisamos de 9 de 2”, soltou ela.

― “Então nós não podemos fazer só cestas de 2, infelizmente”, falou Pedro. “Como eles foram os primeiros a marcar, eles estão com vantagem de uma rodada e vão ganhar. Existe a possibilidade deles errarem a de três, mas eu não estou a fim de jogar com porcentagens”.

Eu passei a mão pela barba rala que tinha em meu queixo. 

― “Bom, vamos ter que marcar mais duas cestas de 3 pontos. Assim ficamos à frente deles e depois nos garantimos nas cestas de 2 pontos”.

Eles me olharam com preocupação. Nós sabíamos que era difícil garantir cestas de longe. 

― “Carol, você arremessa muito bem. A sua posição vai ser sempre a mais distante, acho que garantimos assim nossos pontos de 3”.

― “E eu?”, perguntou Pedro.

― “Vamos ficar nos movimentando muito, montando as jogadas e os levando para longe de Carol. Você é maior que eu, consegue enterrar caso seja preciso. Se você ver uma brecha muito grande, pode garantir os 2 pontos logo de começo”.

Olhei para os três que meneavam a cabeça.

― “Se isso tudo correr bem, eu juro que levo vocês dois para jantar. Que tal, hein? Aí você, Pedro, vai me contar tudo”.

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