Um estranho rico vem nos visitar

Capítulo VI

Numa curva sinuosa, acabamos dando de frente para um portão alto. Havia uma porta bem desgastada pelo tempo, com um tapete amarelo escuro com letras vermelhas: “Bien-Venidos!”

– “Pessoal, chegamos. Amaru, venha em minha bolsa.”

Amaru tornou a se encolher, ficando do tamanho de um chaveiro.

Ela deu um sorrisinho presunçoso, e desceu do carro.

O hotel parecia cair aos pedaços. As paredes estavam todas descascadas, e o chão parecia que não via um pano há muitos meses. Além disso, um homem muito mal-encarado nos olhava, mascando algo que parecia ser um chiclete marrom, numa poltrona puída, que eu desconfiei ser a recepção.

Carol foi até ele, colando bem no balcão de madeira clara. Ouvi uns termos em espanhol rápido, e das mãos da minha amiga saiu um maço de dinheiro peruano. O cara suspeito apenas mordiscou mais seja o que for que ele tinha na boca, e nos indicou uns dos quartos mais ao fundo do estabelecimento. As paredes tinham uma cor amarela clara, quase branca, um pouco caloroso. As duas camas estavam encostadas cada uma contra a parede, deixando uns 2 metros entre elas, com um travesseiro fino, quase um tapete, em cada uma delas.

– “Desculpa Carol, mas não havia um local melhor não? Somos fugitivos, por acaso?”

Ela largou Amaru numa cômoda não muito limpa e suspirou.

– “Nesse hotel, não preciso fazer o check-in. Dinheiro vivo e o primeiro nome já bastam.”

– “E qual o problema com identidades?”

– “Tiago, eu sou uma guerreira mítica viajando com uma cobra celestial. Todo anonimato é bom nesse momento.”

Ela falou isso como se fosse óbvio.

Enquanto que para mim, se você não tem uns quinhentos mil seguidores em suas redes sociais, não há nada para se preocupar. 

– “Eu vou tomar um banho, Tiago”.

– “Mas você não tem malas.”

– “Até onde eu sei, a gente toma banho sem roupa”.

Na minha mente veio um pensamento daqueles velozes, que nem são processados direito: Carol pelada, a cor da pele bronze polido refletindo a luz do sol que ainda entrava pela janela no canto do quarto.

Não sei se foi minha cara sem reação ou a leitura da minha mente que a deixou vermelha na hora. Bom, poderia ser também a minha boca aberta.

– “Humpf!”

E a moça dos lábios de mel e coque apertado saiu com passo forte, com Amaru já em cima da pilha de lençóis, no canto. Tinha se encolhido, pronto para outra soneca.

Balancei a cabeça, reprimindo minha mente imaginativa demais, quando me dei conta de que estava com uma enorme sede. 

– “Carol, vou buscar minha garrafa de água lá no carro! Precisa que eu compre alguma coisa?”

Não ouvi nada, em princípio. Depois, algo como “Vergonha na cara!” se materializou pela porta do banheiro. Saí do quarto sorrindo.

Quando cheguei lá fora, a noite já começava a descer. E olha para mim: eu estava abrindo uma caminhonete roubada por uma divindade peruana. Que viagem.

Apesar disso, quanto mais louca parecia a situação, mas um formigamento na barriga se acentuava. Era como se eu tivesse tomado muito refrigerante, daqueles bem gasosos, com o estômago vazio. Aquilo ali borbulhava, me dando um gosto estranho na boca, e meus dentes pareciam se ranger sozinhos. No primeiro momento, achei que fosse impressão minha, por eu estar pensando no assunto. Quando eu voltava para o quarto, porém, comecei a me sentir verdadeiramente mal. 

– “Carol, acho que preciso de um rem…”

O chuveiro já estava desligado, mas ela não estava no quarto. A cama da minha parceira de viagem estava ocupada por um cara de cabelos claros, quase loiros.

– “Tiago, precisamos conversar.”

Ah, o milagre da vida! Sempre acha um jeito de nos surpreender.

O homem de camisa branca com corte social se levantou e veio em minha direção. Reparei que usava uma calça de sarja preta, e uns coturnos muito arrumados que subiam até a canela. O rosto trazia uma mistura de alivio com preocupação, que pesavam a idade que ele demonstrava. Acho que eu lhe dava uns vinte e cinco, trinta anos. 

– “Ow, ow! Vamos com calma! Quem é você? 

Prioridades, amigo.

– “Tiago, me escute: você tem que sair daqui. Agora.”

Foi uma ótima hora para Carol abrir a porta do banheiro. Já estava com seu arco na mão, e a aljava nas costas, por cima da roupa (de onde ela tira tudo isso?). Como explicado hoje cedo, seus pés descalços encostavam com firmeza no chão gelado, o poncho caía livremente pelo corpo. Mas o mais impressionante era o cabelo semi molhado que deslizava por um dos ombros. Sem o coque, eu percebia como ele era longo.

– “Se aproxime e a próxima flecha vai estar em seu coração.”

PARA. Arrasou. Era demais para meu coraçãozinho semi apaixonado.

– “Calma, Carolina, não sou uma ameaça.”

Carol arregalou o olho diante de seu nome inteiro, mas um instante depois retomou sua pose fria. Afinal de contas, existia uma chance de 50% de acerto: era Carolina ou Caroline.

Caroleide estava fora de questão.

– “Estou aqui para avisar ao Tiago que ele precisa sair dessa história. Nesse exato instante.”

– “Ahm? O quê?

O olhar que os dois me deram foi exatamente o mesmo. Só Amaru que meneou a cabeça como: “coitado, sofre de burrice aguda. Agora já podemos comer?”

– “Tiago, você não entende a profundidade disso tudo.”

– “Tente me explicar.”

Carol saiu cuidadosamente do banheiro, ainda apontando o arco para o visitante. 

Eu já tinha visto alguns torneios olímpicos de arco-e-flecha pela TV, e sabia que, embora houvesse uma roldana nas extremidades dos arcos esportivos, que aliviava um pouco o peso da puxada, mesmo o mais calejado atirador esperava o momento certo para esticar a corda, além de sempre se concentrar para a mão não tremer. Nossa guerreira inca, pelo contrário, não vacilava nenhum um pouco. A puxada era firme, e os punhos retesados, mas os braços não pareciam fazer força. E olha que não tinha o apoio das roldanas, já que era um arco primitivo. A madeira não rangeu nada, e se sentia como que confortada quando contorcida.

– “Não confio em você. Não sinto odor de monstro, mas percebo que você também não é um simples humano. O que veio fazer aqui?”

Carol estava chamando o estranho de ET? Ele parecia muito mais um riquinho da Zona Sul de São Paulo, com suas roupas que lhe caiam perfeitamente bem e seu ar de supereducado.

E o único cheiro que eu sentia era do xampu de menta que ela tinha usado.

Ele virou seu corpo de frente ao meu, e levantou os braços, mostrando que estava desarmado e sem intenções de alguma ação drástica.

– “Por favor, Tiago, você precisa sair daqui. Disso tudo.”

– “Eu posso até acreditar em você, mas explique alguma coisa, tipo, como você apareceu aqui no quarto de rep…”

– “Não há tempo!”

Ele me interrompeu, e eu não tinha gostado. Afinal, cada um tem sua vez de interagir. Além disso, avançou um passo na minha direção. 

– “Não se mexa, estranho.”

O arco de Carol retesou um pouco mais, a fibra que compunha a corda admiravelmente firme. 

Estava com um pouco de medo daquela puxada olímpica de moça. Se ela se distraísse um pouquinho, e perdesse, por segundos que fosse, a pegada na flecha, um acidente sinistro ia ocorrer no quarto. 

Uma estaca de quase quarenta centímetros a apenas três metros de distância, arremessada com a flexibilidade da madeira. A palavra certa para isso é forte: morte certa.

– “Tiago, por favor!”

Algo naquela súplica foi forte o suficiente para me sacudir inteiro. Eu vi tanta sinceridade, medo, preocupação naquele olhar, que pensei seriamente em largar tudo e sair correndo, porque, de algum modo, uma coisa muito terrível iria acontecer se eu ficasse naquele cômodo. Mas meu lado racional tomou conta de mim de novo.

– “Olhe, as coisas não func…”

Um tremor sacudiu as paredes do hotel. O incrível é que senti sacudir meu estômago também. Dobrei-me como se tivesse levado um gancho de um marinheiro.

– “Tiago!”

Carol abaixou o arco, voltando ele ao normal, e guardando a flecha o mais rápido que eu já vi. Sua arma não era simplesmente um instrumento: era quase que uma extensão dela, como um braço ou um pulso extra.

O estranho deixou caírem os ombros.

– “Já começou.”

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