Verdades profundas + Cérebros derretidos

Capítulo III

1º – Uau.

2º – Cadê a mochila que estava nas costas dela? Ah, simplesmente virou um monte de flechas pontiagudas.

Eu fiquei ali, parado no tempo, apenas admirando os detalhes do que iria acontecer. A pele de Amaru tinha uns desenhos bonitos no dorso, pontinhos que contavam histórias. Percebi isso quando ele voava em minha direção, num bote muito bem calculado, com as presas enormes, agora do tamanho do meu dedo médio, prontas para serem cravadas no meu pescoço. 

O mundo rodopiou na minha queda sensacional, depois de eu ter levado um chute no joelho vindo da menina. A cobra passou reto onde antes estava minha cabeça, e foi aterrissar com graça a uns 5 metros de nós dois. Percebi nesse momento também que minha protetora estava descalça, os pés bem firmados na grama. A pele era bem mais bronzeada, como se ela tivesse vivido sem usar tênis a vida inteira.

Virei a cabeça rapidamente quando ouvi um zunido curto, baixo, mortal. A minha guardiã cravou uma flecha a dois centímetros da cabeça de Amaru. A pena ficou oscilando pela brisa enquanto a haste vibrava com o impacto na terra. 

Pelo menos o jardineiro teria mais buracos para plantar suas hortênsias.

– “Amaru, pare!”

– “Guardiã, tuas flechas não podem me ferir. Sou feito das águas geladas do Titicaca, antes mesmo de Viracocha tomar consciência do que seria”.

A menina puxou mais uma de sua aljava, posicionando-a no arco.

– “Este aqui é um arco de extremos, Amaru; nada resiste a sua penetração.”

Apesar de teimoso, o Sr. Cobra sibilou com um pouquinho de medo. Seus olhos se alternavam de mim para a flecha em sua direção. Em seu lugar, eu teria desistido faz tempo. O Tiago aqui não era tão saboroso assim.

– “Eu preciso injetar meu soro neste mortal! Só assim descobrirei o paradeiro da Puma!”

– “Amaru, esses procedimentos não são permitidos, uhm, sei lá, desde uns mil anos. Você sabe que apenas os guerreiros treinados e abençoados pelo Rei sobreviveriam ao seu veneno.”

Ele bufou (cobras deveriam fazer isso?) e balançou sua cabeça com tristeza.

– “Sem The Boys pra mim, então”

O sofrimento de ver o quanto ele queria assistir a suas séries preferidas me comoveu. 

– “Peraí, não podemos entrar num acordo? O Sr. Cobra não parece aqueles vilões tradicionais…”

A moça fez um “shiiii” tão alto que até o cara morto enterrado a sete palmos no cemitério mais próximo deveria ter ouvido. Minha testa se franziu um pouco, e sem entender, olhei para minha salvadora.

– “Mier…coles”

Eu manjava de uns palavrões em espanhol, e essa parecia uma boa forma de falar coisas erradas sem que seus pais te olhassem de cara feia.

Quando fui retomar meu assunto com Amaru, ainda em dúvida sobre o que eu tinha feito de errado, lá estava a cobra gigante de dez metros de novo. Não sei como não caí no chão de susto, mesmo com meus joelhos tremendo feito bambu de caçar morcego.

– “POR QUE COBRAS SÃO SEMPRE OS VILÕES DAS HISTÓRIAS?!”

Foi um berro mental poderoso. Apesar disso, Amaru soou mais triste do que bravo.

– “Tudo começou depois que aquele carinha lá, o tal do judeu poderoso, escreveu sobre Adão e Eva, e a serpente no paraíso. De lá pra cá, não tenho mais paz!”

– “Ele não refletiu pra falar, amigo; vamos deixar isso pra lá…”

– “Como se não bastasse a primeira tentação ser culpa da gente, ainda vai o primo basilisco fazer a Câmera Secreta! Eu avisei que não daria certo, mas já viu artista quando bate um ventinho da fama? Fica surdo a todos os conselhos!”

  Ele ciscou o chão com a ponta do rabo, meio embaraçado.

Eu ainda estava processando a tal referência ao bruxinho famoso dos livros e cinemas.

– “Depois teve meus sobrinhos que fizeram Anaconda e Píton, que acabaram de vez com minha imagem. Era botar o rabinho pra dentro de uma casa que todo mundo gritava. Nos dias antigos não era assim.”

Amaru entrou numa espécie de posição fetal de cobras, chupando seu rabo com a pontinha da boca. 

Olhei em direção à menina, que já tinha guardado o arco, atravessando do seu ombro até sua cintura. Ela fez uma cara de desgosto pra mim. Procurei algum tema a fim de consolar o pobrezinho do réptil mítico.

– “Amaru, você pode contar para mim como era no passado? Sabe, não tinha nascido ainda e tal.”

Os olhinhos dele brilharam, e eu percebi que teria um longo dia pela frente. A garota foi apanhar a flecha cravada no chão.

– “Antes dos europeus chegarem aqui, eu, Puma e Kundur, éramos venerados como protetores e amigos. Tínhamos nossas próprias esculturas, e, por mais que não houvesse templo para nós, como era o costume do povo, sempre podíamos ver nossas imagens no começo dos vilarejos e nos pórticos dos palácios.”

– “Você não acha que está sendo muito indiscreto não, Amaru? Temos que lembrar que ele tem um cérebro de mortal, que derrete quando descobre verdades profundas.”

Fiquei olhando para cara dela, ver se sorria, mas os lábios não se alongaram. Não parecia ser uma brincadeira; e eu não queria um derretimento fatal hoje. Ainda não tinha visitado a maioria dos lugares em Lima.

– “Por um lado, gosto dos meus pensamentos; mas por outro, estou conversando com uns dos Grandes, não é? Devo ser especial de algum modo”

Agora ela sorriu. Não, espera; ela deu risada. De mim. Não sabia se ficava lisonjeado ou meio bravo.

Devagar, com a flecha já na aljava, a garota foi se adiantando, com passo pequeno. Senti o Sr. Cobra prender a respiração, como que esperando algum tipo de showzinho legal. 

Os olhos dela estavam presos no meu, e a moça lentamente levou a mão a minha testa. Fez uma espécie de sinal com o dedo, traçando pelo meu couro cabeludo. Depois, desceu até meu ombro e apertou com força, mas com jeito também.

– “Tiago, a verdade é que os deuses incas existem”

Eles ficaram esperando alguma reação exagerada, algum grito, que eu nunca dei.

– “Beleza”.

Minha recompensa foi ver a menina abrir a boca num gesto de surpresa extrema. Não fitei a cobra, mas, mentalmente, ela estava bem intrigada também.

– “Beleza? Beleza?? Quem é você, santo Viracocha?”

– “Não é meio errado chamar de santo um deus antigo? Tipo, misturar tempos e religiões que não estavam conectados?

Ela arfou.

– “Eu falo porque fica gostoso de ouvir: Santo Viracocha! Parece até que ganhamos do Mamma Mia dos italianos.”

Acenei positivamente pra Amaru, concordando com o comentário dele. Nada, repito, nada é mais legal que uma boa expressão.

– “Peraí, você ouviu o que eu disse? Os deuses incas existem.”

Minha cara deve ter continuado a mesma de sempre (Porque só temos uma, não dá pra trocar, hehe. Piada infame.)

– “Ok, por mim, tudo bem. Quer dizer, as coisas existem sem minha vontade mesmo, né?”

Ela me deu um apertão mais forte no ombro.

– “Amaru, porque não está funcionando? Meu contato deveria revelar a verdade. Sempre foi assim”

– “Às vezes precisa de um contato maior, guardiã”

Foi impressão minha ou ele deu uma piscadinha matreira pra mim?

A garota levantou os dois braços na minha direção. Agarrou minhas bochechas, com delicadeza. Suas mãos estavam quentes, reconfortantes. Comecei a notar o quão aqueles olhos eram profundos, o castanho ficando mais escuro quanto mais ela se concentrava.

– “Tiago. Os deuses incas existem.”

Ah, o perfume dela. Tinha algo a ver com montanhas, mas também com o cheiro da maré. Fechei os olhos para sentir melhor.

– “Uhm… Gostoso.”

Amaru deu risada na nossa mente. Parecia estar se divertindo à beça pra um cara de sangue frio.

– “Quê? Ah, deixa pra lá.”

Ela tinha ficado vermelha, se dando conta da nossa proximidade quando segurava meu rosto com as mãos. Soltou-me, e se afastou um pouco. Ainda tinha uma cara intrigada.

– “Seu mundo foi abalado. Coisas que você acreditava podem ser mentiras. Como ainda se comporta assim?”

– “Ele é especial, guardiã; por isso essa reação. Geralmente os mortais desmaiam, entram em choque, chamam pela mãe e tal.”

Bom, eu definitivamente não queria minha mãe. Provavelmente, ela ia ficar soltando umas indiretas pra moça e me deixar com vergonha.

– “Como você sabia meu nome? Acho que ainda não tinha dito pra você.”

Repassei nossa breve conversa no ônibus e não achei nada que lhe desse essa informação.

– “Nós tivemos uma conversa mental, cara; é só você se concentrar um pouco em mim que descobrirá o meu também.”

Fitar ela era fácil. Ainda bem que eu tinha uma razão pra isso. Enquanto eu a olhava, ela se sentou na grama e eu vi seu pequeno cabelo preso ser ondulado por uma brisa fraca. Pensei em quando ela era forte e corajosa pra me salvar, e… PUF. Carolina.

– “Carol?”

Ela sorriu. Não estou mentindo quando digo que o sol reluziu no sorriso dela. Chamá-la assim parecia fácil, parecia certo.

– “Não está tão mal assim, hein? Já está lendo nomes”.

Caminhei até ela e me sentei ao seu lado. Agora, já estava calçada com uns chinelos tradicionais, feito de alguma fibra de planta. Amaru acabou diminuindo para um tamanho mais sociável.

– “Então quer dizer que a mitologia inca é toda verdadeira?”

– “Não sei se chamaria assim. Nunca pensei neles como mitologia. A verdade é que eles vêm e vão, aprontando com a humanidade e com o tempo. E alguns de nós somos bastante perspicazes pra enxergar isso.”

– “E o que mais existe também? É possível encontrar um Zeus ou um Hórus por esse mundão?”

Ela me deu uma batidinha no braço, olhando para o céu, como que calculando as horas. 

– “Quem sabe? Pra mim, um Inti já é o bastante. Temos que ir andando.”

Amaru se tornou pequenina e se aconchegou no ombro de Carol. Eu fiquei meio perdido, ainda sentado enquanto eles saíam da grama.

– “Espera, vamos para onde?”

– “Você provou que não é uma pessoa qualquer. Acho que o soro da verdade de Amaru em você teria um efeito positivo, mas não quero testar aqui, por precaução. Vamos para um lugar onde há uma ótima curandeira pra, você sabe, caso suas veias murchem.”

Ótima ideia. Nada de veias encolhendo pra mim.

– “E assim vemos se conseguimos mais alguma informação sobre essa situação toda. É realmente estranho que Amaru tenha visto você sequestrando a Pu.”

– “É verdade, sei o que vi.”

Eu já estava mais próximo deles quando a serpente nos transmitiu isso.

– “Não consigo ver como isso é possível, mas tudo bem. Acho que vai ser legal.”

Suspirei animado, enquanto Carol me deu um sorriso cansado. Ela estava mais feliz do que quando cruzamos os olhares no começo do dia. Talvez seja porque eu reconheci a essência de guerreira dela, diferente do que deve acontecer no resto do tempo.

– “Então: pra onde vamos?”

O sorriso dela murchou.

– “Casa.”

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