Um Gnomo Diferente

Capítulo II

A primeira alocução poética de Dastan foi aos três anos. Seu irmão caiu da montaria, e ele disse: “Cai da sela o cavaleiro; talvez mais burrico seja aquele que monta do que o que é montado”. Seu pai mal conteve as lágrimas, sentindo, talvez, que da poesia para a música era apenas um ajeitar de chapéu. E assim foi. 

Dastan logo cedo deixou seu berço de peles de animais felpudos por uma cama de saco de aniagem no sótão da casa. Os melhores quartos eram aqueles próximos do fogão a lenha da mãe, que espalhava calor nas noites mais tempestuosas. Porém, o menino prosperou no infortúnio: enquanto o vento assobiava a mais terrível das melodias, lá estava ele acompanhando em terça diminuta o ruído da natureza com sua pequena harpa. Teve que fazer muito para ganhar a cítara do pai, que pertencera ao pai dele, o rouco, pois sua voz era fanhosa e seu coração, duro. Mas, completos seus dez anos, como presente de reponsabilidade e prosperidade, símbolo da maioridade na vila, o jovem recebeu o instrumento do pai. E nunca mais deixou de ter uma resposta cantada para tudo, ao que lhe valeu a alcunha de poeta das vacas, já que até ao pastoreá-las fazia árias para acalmar os bovinos.

Mesmo com a música tão presente em sua vida, Dastan não conseguiu proferir um verso melódico ao ver, pela primeira vez em sua vida, um gnomo, com seu gorrinho característico e tudo o mais. Seus pezinhos pareciam pequenos para um corpo troncudo, e os braços eram finos demais, mas quem sabia da anatomia de um gnomo? O velho Fei afirmava que tinham dois fígados, por isso podiam tomar quantos litros de hidrobber quisessem.

Dastan gostava de hidrobber; ela lhe aquecia o coração e o fazia mais leve; também por isso não gostava de gnomos. Mas o motivo principal era que eram conhecidos por roubarem na calada da noite as casas de Pontepotí, deixando tudo em desordem depois. E lá estava o criminoso, fuxicando sua trouxa de viagem sem o mínimo remorso.

“Preciso fazer algo”, pensou o jovem.

A única coisa que tinha à mão era sua cítara, e nunca ia tacar-lhe o instrumento na cabeça. Era mais fácil que ele se jogasse a si mesmo do que sua querida, de detalhes prateados e, quem sabe, contornos de cobre (apesar de parecer latão).

Dastan assobiou com os dedos comprimindo os lábios, gerando o som agudo como de um apito entupido com a pasta de creme de sua mãe. Imediatamente, o gnomo parou o que estava fazendo e se voltou, com um reflexo impressionante para o rapaz. A ideia de Dastan era enfrentá-lo de frente, como nas histórias de Fei. “Se um gnomo cruzar seu caminho, você deve chama-lo para uma disputa de assovio”. Era o momento de ver se daria certo. 

Mas o malandro ladrão não quis saber de competição. Imediatamente pulou do lugar em que estava para o peito de Dastan, que mal conteve um grito. Só conseguiu pensar em amaldiçoar Fei pelos seus conhecimentos mentirosos antes de tropeçar nas próprias pernas e cair sentado, de um modo tão vergonhoso que fariam sinfonias para sua queda. 

“Ainda bem que meu irmão não está aqui”.

Mas duas coisas aconteceram a Dastan quando a criatura maligna pulou em seu peito. Uma delas foi a caída lendária do jovem. A segunda foi descobrir que aquilo não era um gnomo.

Dastan fitou o pequeno animal. Sim, ele tinha pelos. E um focinho que lhe lembrava das raposas, mas não era uma raposa; os bracinhos eram curtos e os dedos da mão lembraram ao menino da mão de sua irmã mais nova: pequenos, ágeis e pelados. Os olhinhos pretos brilhavam reluzindo o pequeno lampião que o Pontepotiano carregava. 

― Calma, amigo, tentou o poeta.

Dastan fez menção de fazer uma carícia no bicho, mas ele mostrou seus dentinhos afiados e eriçou os bigodes. O corpo era volumoso e pesado para uma cabeça pequena. Seria uma raposa com distúrbio de crescimento, e ainda por cima zangada? Eram as repostas que o menino precisava.

Perdido em como sairia dessa situação, Dastan se relembrou do conselho da mãe ao montar cavalos: “Não há criatura viva que não repercuta com uma boa melodia”. E, com os grunhir do animal cada vez mais presente perto do rosto, Dastan começou a entoar a canção que salvaria sua vida, ou pelo menos lhe conservaria seus olhos.

― Doce criatura, filha da noite, com o corpo coberto da rajada das estrelas que pervagam os espaços, não quero te fazer mal; vós, que dominais os espaços que a sombra das folhas produz, sabei que, se me poupares, devoto minha aliança a ti, tornando-te não só senhor do escuro, mas amigo dos homens.

E a música carregou essa mensagem para o entendimento do animal. Como sob efeito dos óleos mais perfumados, seu corpo relaxou, seus bigodes pararam de vibrar e suas orelhas deixaram de estar apontadas para cima; uma pequena transformação ocorreu ali, até o animal se confortar levemente no peito de Dastan caído. Enquanto cantava de coração, a criatura deixou-se tocar pelos dedos do jovem, rumorando com gosto. 

E, na hora em que a estrela d’alva despontava, Dastan fazia um amigo. 

― Vou chamar-te de Porvir, disse o menino, pois você selou meu destino e me conquistou um futuro pleno dos meus desejos: viajar pelo mundo com um amigo.

Porvir fez um pequeno barulho amigavelmente, e saiu de cima de Dastan. Foi até a bolsa do menino, toda revirada, e, pegando um dos biscoitos que a mãe de Dastan havia feito, repartiu-o em dois e ofereceu uma metade ao poeta. 

― Com prazer, meu amigo.

E comendo o biscoito, selou sua amizade com a criatura.

― O que você é, pequeno?

Como era de se esperar, Porvir não respondeu. Apensa pegou mais um biscoito e o dividiu novamente.

― Espera aí, disse Dastan, indo em direção a sua mala e a arrumando. Esses alimentos servirão para viagem que faremos.

Porvir o fitou com os olhinhos tremendo, mas pareceu se dar por satisfeito com as duas metades que tinha nas patas. Com grande voragem, engoliu os dois pedaços com atitude. E, com agilidade, subiu no ombro de Dastan. 

― Vamos, disse Dastan enquanto pendurava seu pacote no outro ombro. Você precisa conhecer minha família. 

Enquanto o poeta ia em direção à casa principal com Porvir pendurado em seu ombro, o Sol imergia do horizonte. A mãe de Dastan o olhava da beirada da casa, ligeiramente assustada por encontrar seu filho com um animal que nunca havia visto.

― Dastan trouxe um gnomo para casa!

Era sua irmã de cinco anos que o vinha receber primeiro.

― Não, Estela, é apenas uma raposa diferente. Parece que ela consegue se equilibrar com duas patas, diferente das que vemos por aqui.

Porvir não se intimidou diante da humana, estendendo o rabo para a menina, num gesto de boas-vindas.

― Ó, uma cauda listrada e felpuda!

Sim, Porvir definitivamente era um espécime raro naquela região.

― Mãe, este daqui é Porvir, e ele será o amigo que a senhora me cobrava. Não precisarei te poupar de sua montaria, e estarei bem acompanhado.

Ela pareceu analisar metodicamente a criatura, esperando que ela pudesse crescer e defender melhor seu filho. Mas Porvir pareceu bastar-lhe. Então, com um beijo de despedida, sua mãe o abençoou.

― Vá, Dastan, o poeta das colinas, vá! Conquiste seu lugar no mundo, traga glória à sua cidade, alegria a seus pais e felicidade a seus dias.

Com o coração leve, tendo-se despedido de todos que o aguardavam, Dastan partiu num dia seco de outono, quando as folhas cobriam os planaltos. Ele olhou mais uma vez para trás, apenas para ver o sorriso contente no rosto de sua mãe e o aceno de sua irmã pequena. Com Porvir em seu ombro, ele sabia que seria uma questão de tempo para atender aos desejos de sua mãe. 

E, sem mais, após um declive, firmou-se no caminho e seguiu em direção ao vento. Sabia que, a leste dali, havia um povoado onde os de Pontepoti iam vender o leite que suas vacas produziam; começaria por lá. Pediria referências e abraçaria o desconhecido. 

― Ó céu azul, limpo de nuvens, cantou Dastan, testemunhai nossas pegadas! E que os frutos cresçam 10 vezes antes que eu volte a Pontepoti!

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