Beijado por uma heroína

Dia III

– Já estou prontaaaa! Você está atrasando.

Tratei de engolir meu almoço em mais duas garfadas. Que pena. Era dia de lasanha na minha casa. E uma das famosas da mamãe, que tinha admiradores por toda vizinhança. 

Minha missão hoje era deixar minha querida irmãzinha de seus 17 anos (já não era tão “zinha” assim, não é?) na casa de sua amiga, Débora. Ela deixou tudo pra última hora e estava em desespero tentando compensar o tempo perdido. 

“Adeus, minha gordurosa lasanha. Prometo a partir de hoje que nunca mais vou deixar uma amiga para trás”.

Aí me levantei com alguns restos mortais saborosos sabor presunto e queijo chorando e se lamentando em meu prato por não estarem juntos com suas companheiras no meu estômago. 

Vai, ficou um pouco poético, admitam.

Cinco minutos depois estávamos nós rumo à casa da amiga da Bia. Isso porque ainda tivemos que enfiar no carro umas duas malas coloridas, um secador de cabelos de última geração, uma bolsinha de ombro, duas sacolas de cosméticos e ainda uma caixa de isopor.

– Bia, pra que tanta coisa assim? Não vai ser só uma noite?

– Tolinho. Uma mulher tem que ter seus mimos, não concorda?

– Mas a Débora não tem seu próprio secador? Precisa mesmo levar o seu?

– Não vou responder essa pergunta.

Mulheres e suas prioridades.

– Pelo menos me diga o que tem nessa caixa de isopor. Está bem pesada.

Bia sorriu um sorriso tão maligno que eu tive que olhar umas três vezes para não confundi-la com aquele palhaço do IT – a coisa.

  – Tem órgãos pra gente vender no mercado negro.

– Ah, claro.

Silêncio constrangedor.

– Sério, Bia, se tem órgãos ali dentro, porque levar pra casa da sua amiga? Não é perigoso ficar transportando isso?

– Tiago, Tiago. Se eu vendo em casa, posso ser presa. Se eu vender na casa dos outros, não é mais minha responsabilidade, e eu lucro do mesmo jeito.

  1. Me diz se uma irmã assim não é tudo de bom?

– Isso mesmo, querida irmãzinha. Sempre pensando longe.

O resto do caminho foi tranquilo, até porque eu fiquei tentando pensar em quantos órgãos caberiam naquela caixa. Tinha que ter muito gelo, e eles não podiam ficar se trombando. Portanto, talvez um coração, uns rins, até mesmo um fígado. Umas córneas, com certeza.

Quinze longos minutos transcorridos, estacionei o carro e buzinei de leve. Débora apareceu com um pijama listrado e umas pantufas gigantes do homem de ferro. Homenagens singelas.

– Bia, até que enfim! 

– Antes tarde do que nunca, Deb.

Ela foi correndo abraçar a amiga, enquanto eu pendurei tudo que dava no cangote e segui rumo ao portão.

– Amiga, você trouxe a caixa de órgãos!

– Cumpro minhas promessas, Deb, hehe.

– Meninas estranhas, quando vocês pararam de brincar com barbies?

– A gente parou de brincar aos sete anos, Tiago.

– Ah, pode parar, nem acredito nisso! Até um mês atrás eu via vocês no quarto com um monte delas!

– Era pra enganar vocês, homens, maninho. A gente conversava sobre o tráfico no mercado negro e como entraríamos no ramo dos órgãos transplantados. 

– Pode crer, Bia.

As duas se abraçaram mais uma vez enquanto eu as olhava levando esse negócio macabro longe demais.

– E onde eu posso deixar essas… coisas?

– No meu quarto, Tiago, a última porta à direita. 

Gesticulei com a cabeça pra mostrar que entendi e comecei a ir, a fim de deixar aquela carga toda.

– Só uma informação, Tiago. Meu quarto é o da direita; não entre na esquerda, já que minha irmã está lá. Ela terminou com o namorado de novo. Pode ser perigoso pra você.

Ela disse isso com um sorriso macabro e minha irmã olhou pra mim como um policial olha pra um suspeito.

Gente, o que a irmã dela podia fazer?

Estava começando a ter medo dessas meninas.

Enfim, chegando no quarto, bagunçado por sinal, deixei as malas no chão, e o resto na cama. Fiquei tentado a abrir aquele isopor, mas estava lacrado com fita crepe. Elas estavam levando a sério suas diversões.

Débora tinha TV a cabo e estava bem no canal de esportes, e um jogo de basquete estava acontecendo. Fiquei fisgado por um momento, vendo algumas cestinhas enterradas com valentia.

– Ei, quem é você?

Uma moça estava no batente da porta, encostada, mas ao mesmo tempo arqueada, pronta pra sair correndo. Ela tinha os olhos contornados por um delineador negro, e o cabelo cortado curto, até a nuca. Os olhos eram de um azul-elétrico impressionante, hipnóticos. 

– Desculpe! Calma que eu explico. Meu nome é Tiago e sou irmão da Bia. Vim apenas trazer minha irmã, amiga da sua.

Ela me olhou mais uma vez com desconfiança. Em seguida, baixou a guarda e arrumou sua franja, que cobria a testa com classe. Usava um camisolão longo laranja, que cobria apenas uma parte de suas coxas. 

– E você sabia que é estranho ficar no quarto de uma menina menor de idade?

– Claro, claro, eu já estava de saída. Fiquei vendo o jogo e me distraí um pouco.

Ela se aproximou mais pra ver na televisão da irmã e se sentou na cama. Tinha um pouco mais de 1,5m de altura, do tamanho de Bia. Sua pele era de um branco pálido, quase doentio, e seus lábios eram pintados com um batom escuro. Bem dark girl.

– Você gosta de basquete, então? Sente aí, vamos ver uns dribles.

Ela era linda de um jeito meio soturno, como é a beleza de um outono que destrói e seca a vida verde da primavera e do verão.

– Você tem certeza? Não acho bom eu ficar aqui, vai que a sua irmã volta e encontra nós dois…

– Você quer ir pro meu quarto, então? É assim, apressadinho?

Eu fiquei com a boca aberta em choque. Ela apenas se levantou e parou a dois centímetros de mim.

– O quê? 

Ela tocou minha testa com seus dedos finos e pequenos, com as unhas pintadas de preto. 

– O quê pergunto eu. O que esta cabecinha está pensando?

Seus olhos azuis me prenderam em um estado de dormência. Não sentia mais meu corpo, mas percebia todo o calor que emanava dela.

– Eu… eu… nem sei seu nome.

– Meus amigos me chamam de Ravena.

– Por quê?

– Adivinha, irmão da Bia.

Não precisava ser gênio pra tentar desvendar esse mistério.

– Você é escura, tenebrosa, como o mar de madrugada. Tem uma aura de poder e tristeza, e seu rosto narra essa história como ninguém. 

– Não é tão burro como a gente imagina, né?

– Acho que vou aceitar isso como um elogio.

Ela sorriu e seus dentes brancos contrastaram com seus lábios roxos. 

– A Ravena sempre guardou segredos e por isso ela era fascinante. Como você é.

– Uhm… você é até que bem adestrado. A Ravena é magnética, misteriosa, mística e poderosa. Tudo o que uma mulher deve ser.

– Tenho certeza que todos os titãs quiseram, ao menos, um beijo dela.

– Concordo com você, Tiago. E muitos deles lutaram por isso. O que você faria por um só beijo doce de uma Ravena?

Falei sem relutância.

– Retribuiria com muito gosto.

Ela riu uma risada morna, mas arrepiante. Senti meus pelos da nuca se arrepiando quando sua mão gelada passou pelo meu rosto. Ela agarrou minha mão e pousou em sua cintura, fazendo com que nossos corpos se tocassem. Senti suas curvas e meu coração bateu mais rápido. Ela traçou um risco na minha boca, e lambeu ligeiramente seu dedo, provando de meu sabor.

– Tiago, por hora, isso basta.

Então, num campo de força criado pela atração dela, meus lábios foram trôpegos em busca dos dela, e uma conexão mágica se originou ali. Ravena sugou minha alma por meio do seu beijo, enquanto eu a trazia mais perto e mais perto, querendo me fundir, me doar. Uma das suas pernas envolveu minha cintura e eu caí na magia dessa maga incrível que tinha um beijo tão doce como o mel.

***

– Tiago, você ainda está aqui?!

Era Bia me alertando do torpor que eu me encontrava, encostado no batente da porta. 

– Tiago, você sonhou acordado de novo, né? Encontrou com a irmã da Deb, com certeza.

– É, mas ela só passou e me perguntou quem eu era. Depois de responder, ela foi pro quarto dela.

– Você não tem conserto mesmo, meu Deus. Consegue ir pra casa sem bater o carro?

– Consigo sim, Bia, estou bem.

Só recebi um olhar de seriedade vindo dela.

– Você precisa é ir pra um terapeuta, psicólogo, sei lá.

– Fico comovido com sua preocupação por mim, mas já estou indo. Até amanhã.

– Tchau, irmão estranho.

Passei pelo portão e entrei no carro. Nem um sinal de Débora ou de sua irmã. Apenas liguei a chave na ignição, senti o motor vibrar e parti. Deixando pra trás mais um sonho de amor.

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