Férias Famintas

Capítulo I

Observação e dedução. O método que marcou gerações de Sherlockianos, que, a partir de então, começaram a contar os degraus das escadas, a demarcar o perfume das senhoras e estudar o formato dos sapatos. Cria-se em torno dele a maior das famas, e, com isso, a maior das dificuldades. Já ouvi gente dizendo que não gosta das adivinhações de Holmes porque são muito roteirazadas (como se eu soubesse o que isso quer dizer), que são construídas, e, portanto, nada convencionais. 

Mistérios policiais à parte, isso é o que o ser humano mais faz. Querem ver? É aquela mulher que vocês viram correndo na praça. É, aquela mesma com uma camisa longa de malha de oncinha, e calça jeans. Vocês, leitores, já se fizeram a pergunta: por que ela está correndo com roupas assim? Dedução, jovens; dedução. A observação já está presente no “roupas assim”. A mulher não poderia estar fazendo um pequeno exercício diário, porque hoje em dia é impraticável fazer corrida de jeans. Nem preciso me estender nisso. A blusinha de malha de oncinha também não, porque todos sabemos, também por observação, que existe uma grande variedade de roupas esportivas femininas, bem mais que masculinas. Homem bota short e camiseta ou regata; as mulheres têm tops e muitas coisinhas que eu não vou nem saber nomear.

Enfim, vocês podem me dizer: “Mas ela é pobre, Tiago, não tem dinheiro para essas coisas da moda”. Dedução de novo. Viu como é? Eu responderia que ninguém é pobre o suficiente para tirar o horário das 16h para se exercitar e não conseguir comprar uma calça apropriada, uma que seja. É, minha dedução parece mais racional, mais apoiada na realidade que a de vocês, até porque minha observação foi maior: vocês não sabiam o horário, ao contrário de mim.

E se vejo um cara correndo atrás dela? “Vai depender de como ele é, Tiago, você é chato pra caramba. Começa logo a história!” Dedução de novo, pequenos e grandes gafanhotos. Vocês conseguiriam saber pelas roupas e pelas atitudes de um possível homem correndo atrás dela qual a relação de causalidade? Talvez, se vocês conseguissem penetrar na psicologia do ser humano. E o que te dá essa capacidade? Muita observação e catalogalização. Se eu já observei categorias de homens, héteros e homos, ricos e pobres, e outras várias composições, eu consigo estabelecer um padrão mais ou menos correto.

“Ai você pegou pesado, Tiago do céu, tá falando de raças, seu racista”. 

Primeiro erro. Não tem a ver muito com características genéticas, mas com comportamentos. E como não existem comportamentos inatos em etnias, sua teoria cai em erro. Ou seja, você é um grande problematizador de facebook, aposto.

“Tiagão, na boa, todo ser humano é único e lindo à sua maneira. Ninguém se comporta segundo um padrão”.

Essa eu nem preciso responder, né? Na sociedade o que nós mais temos são padrões de comportamento. Talvez só haja menos padrões do que pressão para cumpri-los. E mesmo que você seja orgulhoso o bastante para dizer que fugiu do padrão imposto, você provavelmente se encaixou em outro de seu gosto.

Existem erros, é claro! É por isso que o julgamento é condenado por Jesus. Mas ele não fala nada da observação, fala?

E porque eu estou aqui explicando isso para vocês, conseguem deduzir?

“Provavelmente você está vivendo uma história arrepiante e atordoante, sem fazer sentido”.

Elementar, meu caro jovem, elementar.

Depois de passar com uma certa folga na seleção de mestrado e com promessas positivas, decidi que merecia umas férias de São Paulo. Longe de um possível Sherlock (de novo ele!) pedindo que eu interrompa uma guerra usando uma almofada laranja. Ele diria que o laranja causa uma influência psicológica de anuência de impulsos bélicos (eu falei pro Watson não levar ele à aula de cromoterapia, eu falei!)

Então, juntando uns trocados mais uma benevolência de minha mãe ladra (leia a história passada, por favor, e não a julgue severamente, ela não fez por mal), vim encostar essa carcaça de seus 22 anos, que chamam de jovem, apesar de minhas costas já não serem boas desde os 20, vindo para Fortaleza. O catálogo da agência era colorido demais para eu negligenciar, e o status de terceira cidade mais violenta do Brasil não me assustar (Eu passei pelo Rio, losers!). Com minha sorte, era mais fácil o Groot me roubar do que um marginal comum. 

E isso me lembra de que alguns de vocês ainda não entenderam minha condição. A única coisa que sei é que não é transmissível por beijo (procuram-se namoradas). De resto, me é tão estranha como é para vocês.

Enfim, estava eu sentado num pequeno café que há no centro histórico da cidade, de onde eu podia ver o mar batendo com piedade nas rochas, e a brisa e maresia vinham com gosto até meu rosto. Eu podia ver a estação dos bombeiros dali, algumas gaivotas rebeldes voando em círculos, e, logo em frente ao mar, uma quadra poliesportiva, onde alguns jogavam basquete.

Sou apaixonado por panoramas. E aquele ali, com todo o horizonte infinito das águas salgadas se movimentando, mas o vento que refrescava o calor do final da tarde, e ainda umas jogadas bonitas de uns cestinhas oportunistas me deixavam completamente anestesiado. 

Ahhh. Descanso. 

Sem corridas.

Sem emergências.

Sem preocupações.

Apenas eu e o velho mundo, conectados, e… orelhas?

Aquilo que voou foi uma orelha? 

Meu Deus.

Agora que vocês estão bons em observação e dedução, o que vocês diriam se, de um grupo que jogava basquete muito desportivamente, com uma política corporal toda pacífica, honesta, um deles começasse a parecer bater nos outros? 

“Uma desavença aleatória, Tiago, provavelmente um esquentou e xingou a mãe do próximo”.

Mas e se ele começasse a morder alguém e os outros começassem a correr desesperados?

“…”

Exato, caro leitor, minha dedução era de que algo havia me alcançado até ali, naquele paraíso. E este algo gostava de orelhas.

O grito dos jogadores começou a chegar até o café, mesmo sendo do outro lado de uma avenida movimentada, bem na hora do rush. Eles não pareciam nada controlados; era como se uma raposa tivesse entrado no galinheiro. Isso se a raposa tivesse quase dois metros de altura e curtisse comer outras raposas, além das galinhas.

Meu primeiro movimento foi correr. Deixar tudo para trás. Pegar um Uber Confort (brincadeira. Perder dinheiro pra quê?), e apenas seguir em frente nas minhas férias. Mas eu tinha a ligeira ideia de que esse negócio me perseguiria até onde eu fosse, mesmo que eu fosse longe. 

Mas o que podia ser? Eu ainda não entendia se apareciam só heróis e vilões das histórias que eu li ou valia tudo para esse universo apostador. Não me pergunte se podia haver aberrações vindas de filmes, eu não queria pensar que o Chuck ou o Fred podiam vir me assombrar. Mas, pelo que eu tinha notado, era só de livros que eu tinha tomado expressa consciência, lido com muita voracidade, sabe? E até agora não apareceu a Mrs. Elizabeth Benett ou o Mr. Darcy para nós batermos um papo sobre os anos dourados da cortesia.

Ops. Isso me lembrou dos zumbis do Orgulho, Preconceito e Zumbis. Será que as versões de filme valiam tanto como os livros? 

E aí eu descobri que ainda não eram os filmes, nem mesmo os clássicos. O Poderoso Chefão podia descansar em paz.

Do meu lado, na mesa ao lado, uma coisa enorme pulou sobre a mesa principal do café. Seus olhos estavam enegrecidos, e as veias do rosto pulsavam como se fossem feitas de piches. Os dentes soltando uma secreção também preta, contagiosa, mal-cheirosa. 

E o pior era a atitude: a de um animal farejando a presa, fungando, me olhando. Por quê? Olhei para o lado, em torno de mim. Todos os que estavam no café começavam a sofrer esse processo de mutação horrível. Mordidos, talvez? Não sei. A única coisa que senti foi a pontada na barriga, que costumo sentir quando trago personagens à vida. Consegui registrar os gritos de agonia agora vindo de fora, como se a vida precisasse ser disputada. 

Juro que pensei que era meu fim. Tão novo e tão atacado. Se existe uma produção além-vida, eles estão me sacaneando um monte.

Tão rápido como registrei os gritos, assim também pareceu para mim o estampido que ocorreu na porta do café. Ela saltou dos gonzos, voando no Cranck que estava sobre a mesa. Nem sinal dele depois da fumaça abaixar. E, com o barulho característico, uma chuva de tiros começou, mas localizada. A pessoa sabia o que estava fazendo, pois não fui pego por nenhum (a essa hora já não sabia se era sorte ou azar. Bom, pelo menos eu não havia trazido o Mad Max, seria mais difícil sobreviver). Em poucos segundos o café ficou limpo de Crancks, apesar de meus ouvidos zumbirem. 

No batente estava um rapaz mais velho que eu, mas nem tanto, com uma pistola Desert Eagle. Reconheci pelo meu gosto por coisas aleatórias, como armas, tipos de facas de churrasco e regras gramaticais (isso eu chamo de poder meganerd). Afinal, não é todo dia que alguém me mostra a cromada israelense, com aquele tamanho de cano e aparentemente pesada (a normal chega a pesar 2 kg). Além disso, o estrago feito nos Cranks me provou que o calibre, se não era .50, era uma .44 magnum maravilhosa de se colecionar.

“Carambola, Tiago, seu cara frio e sem coração”.

São gostos, todos teóricos, nada práticos, meu caro amigo.

Como selos.

Eu não vejo ninguém reclamando de colecionadores de selos. Quer dizer, por quê?

– Corre pra cá!

A essa altura da minha vida, eu já nem me perguntava quem era: apenas corria.

Mas foram os olhos pesados, a posição de líder e a magreza atlética que denunciaram quem era.

– Thomas, oi. Quando tudo isso acabar, posso escrever meu nome ao lado do seu na pedra central?

Sacana, eu sei. Sua testa franziu, como se pensasse sério no que eu dizia. Mas quando ele apontou arma para mais um Crank e o tirava do caminho, liberando a rua detrás do café para gente, ele se voltou sorrindo:

– É correr ou morrer, amigo! Será que você consegue ser um Mazze Runner também?

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