De volta pra casa
Dia I
E assim acabou.
No mesmo dia em que os Vingadores perdiam sua guerra infinita para Thanus, eu também deixava metade do meu universo para trás. Os quinhentos quilômetros que eu deveria percorrer simbolizavam muitos mais que oito horas num ônibus rodoviário; e, pela primeira vez em muitos anos, mesmo sentado ao lado de uma simpática senhorinha fazendo palavras cruzadas, ouvindo uma mãe e uma filha dando risadinhas sobre alguma coisa no banco da frente, e sentindo os solavancos que o cara de trás dava no meu assento, por causa de suas pernas enormes, eu me sentia sozinho.
Os meus fones de ouvido estavam comigo. Apesar de não estarem reproduzindo nenhuma música, não naquele momento, eles eram a coisa que mais me lembravam de lá. Ganhei de meus amigos mais chegados, quando preparávamos um teatro sobre uma ovelha, um ladrão que descia por chaminés, e um conde falido. Eram 04:00h da madrugada, mas ainda rodávamos o tutorial de como pastorear um bode, acreditam? Alguém tinha dado um pulo escondido na cozinha, feito um bule de café quentinho, uns mistos quentes com muito orégano e trazido para o set, que ficava na parte mais baixa do terreno. Não era meu aniversário, mas eles quiseram me presentear porque achavam que eu era um bom diretor.
Sinceramente? Um deles ganhou o fone de brinde e não gostou da cor.
E daí? Para mim, estarmos fazendo o que gostávamos juntos e extrapolando algumas regras como consequência não tinha preço no mundo.
Finalmente, o ônibus parou para o lanche. Já era tardezinha, perto das 18:00h. Olhei para minha companheira de viagem que parecia decidida a não descer. Me esforcei um pouco, e passei espremido, ajeitando minha coluna enquanto levantava minha cabeça. Meus olhos encararam uma moça que vinha vindo na direção contrária, e o resultado foi uma imobilidade meio forçada. Queria dar a passagem para ela. Ou não; quis, na verdade, continuar a fitar aqueles dois círculos negros como o carvão, mas brilhantes como diamantes. Ela sorriu enquanto saía, mostrando aparelhos cor de mel. Era uma combinação diferente, pensei, enquanto descia as escadas.
Estava um céu limpo, com nuvens elegantes e coloridas, porque o sol já se escondia. Parei um pouco para olhar, e milhares de recordações dos pores-do-sol que vi do meu quarto me inundaram. Com um longo suspiro, decidi entrar no restaurante.
Nada de especial no NYC burger. Apenas uns tantos gritos sobre fritas e óleo vegetal, mas nada diferente do que sempre via lá. Fui direto no café, peguei alguns salgados e decidi lamentar mais um pouco sobre minha ida para casa. Nada como uma boa e velha melancolia, vocês não acham? Graças a Deus era outono. Dava para querer ficar quentinho enquanto se tomava um expresso.
Sentei-me de costas para o povo, de frente para os janelões do restaurante. De lá, conseguia ver a estrada, a rotatória, muitos carros chegando. Mais ao longe, somente plantações, milho e cana, que tomavam o interior de São Paulo. Como eu gostava de viajar! E como eu não viajaria por um bom tempo. Talvez nunca mais. Pelo menos, não do jeito que eu viajava antes.
– “Posso me sentar do seu lado?”
Eu me arrepiei, eu confesso. Era uma voz doce, meio melodiosa, definitivamente feminina.
– “Claro que pode, fica à vontade”.
Era a menina dos olhos quentes e frios, do sorriso espontâneo e tímido. Usava uns shorts rasgados que ia até suas coxas, com uma blusinha preta de alça, e uma jaqueta jeans um pouco largada nos ombros. Carregava uma bandeja com um pastel fumegante e um suco de uva.
– “Você parece meio triste. Aconteceu alguma coisa?”
Ela se virou para olhar bem nos meus olhos, já que estava sentada do meu lado. Seu rosto tinha uma mistura fascinante: Ela tinha traços finos, um nariz bem reto, uns lábios pequenos, mas a pele escura como café. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo elegante, e uma pequena cascata de fios sedosos e bem pretos aparecia atrás de sua cabeça.
– “Estou mais ou menos, sabe? Pensativo, acho”.
Suas mãos tinham dedos longos e ágeis, e suas unhas tinham uma tonalidade de azul escuro, céu à noite, não sei bem.
– “Bom, deu pra notar de longe, hehe. Espero que não seja nenhum término recente, hein?”
Ela deu uma mordida grande no pastel. Meu olhar acompanhou sua atitude. Ela me fascinava. Porque tanto assim? O que tinha nessa menina que acendia um tremor na minha barriga? Um calor no meu peito?
– “Você vai ficar me olhando tanto assim e não falar nada? Devo ir embora?”.
– “Não, não, desculpe. É que você é bem… sabe… bonita e…”
Ela riu enquanto tomava um gole de seu suco.
– “Bonita e?”
– “Não sei… leve”.
– “Leve? Tipo magra?”
Eu provavelmente fiz uma careta de menino vergonhoso, porque ela riu mais ainda.
– “Ai, desculpe, não levo jeito com palavras”.
– “Fica tranquilo. Você é um fofo, hehe. Eu entendi o elogio”.
– “Mesmo?”
– “Eu sou leve como uma brisa; já você, me parece carregado como uma tempestade”.
Eu beberiquei um pouco de café antes de falar. Como essa menina me lia tão bem?
Olhei ao meu redor, e ninguém parecia prestar atenção em nós.
– “É, hoje não está sendo um dia bom”.
– “E eu posso ajudar de alguma forma? Você quer conversar?”
– “Não sei se daria pra entender…”
– “Se não me falar, a gente nunca poderá saber”.
Eu olhei pra ela que me fitava com intensidade. Sua boca formava um pequeno sorriso, e uma ruguinha aparecia no canto dos olhos. Fiquei com vontade de tocar naquele rosto amigável.
– “Vamos começar de outro modo, então. Eu me chamo Pamela, prazer. E você é o…”
– “Tiago”.
-“Ótimo, Tiago, isso já é um bom começo, certo? E o que você faz? Trabalha, estuda?”
Ela tomou um gole de seu suco, e quando percebeu que eu não ia responder, me deu um cutucão animado no braço.
– “Ei, isso não vale, Tiago! É sua vez de responder! Já sei, vou te dar um abraço pra você deixar de ficar envergonhado!”
– “Um o quê? Espera…”
Ela não se importou com minhas queixas e me abraçou com força.
Uau. Como aquilo era bom. Seus cabelos tinham cheiro de limpeza, sei lá, talvez algum condicionador de babosa.
– “Ei, Pamela, você venceu, eu falo!”
– “Ah, ainda bem, já estava ficando cansada do abraço, haha. Olhaaa! Que fofo! Você está todo vermelho!”
Eu sentia minha cara queimar. Tipo pimentão na brasa, mas sem a fumacinha gostosa que sai dele.
– “Vamos voltar aqui”, falei. “O real problema é que não sei”.
– “Não sabe o quê?”
– “Não sei se trabalho ou estudo. Não sei o que fazer da vida”.
– “Você vai ter que explicar essa história melhor, Tiago, porque eu não estou entendendo nada”.
Eu engoli seco enquanto olhava mais uma vez para ela. Com um movimento gracioso, ela pegou minha mão entre as dela. Senti um arrepio, seguido de um calor aconchegante. Devo ter ficado mais vermelho, mas ela olhava pra mim com tanta intensidade…
– “Está bem. Vamos lá. Eu fui embora hoje, da minha casa, da minha família. Deixei tudo o que eu vivia há 12 anos para tentar outra coisa”.
Silêncio. Ela digeria aquilo lentamente.
– “Mas foi sua decisão?”
– “Aí que está. Foi… e não foi”.
– “Você foi expulso de casa?”
– “Eu andei por caminhos que nunca deveriam ser trilhados, cruzei linhas que me impediram de ser eu mesmo de novo. E, quando chegou a hora da decisão… já não havia escolha possível”.
Ela me fitou com um ponto de interrogação estampado no rosto. Mas, quando achei que ela ia me fazer perguntas demais, recebi um sorriso compreensivo.
– “Tiago, vem cá”.
Ela me puxou pra mais um abraço. Dessa vez eu me acomodei nos braços dela. Deitei a cabeça no seu peito e senti um cafuné sendo feito no cabelo.
– “Você está perdido. E isso é um problema. Mas eu sei que você encontrará as respostas. Às vezes, quando a gente está no caminho errado, a melhor forma de avançar é retroceder”.
Fiquei pensando no conselho dela. Provavelmente ela leu essa frase no mesmo livro que eu: “Cristianismo puro e simples”, de C.S. Lewis.
Me desembrulhei de seu abraço com um sorriso e uma cara um pouco mais revigorada.
– “Obrigado, Pamela. Posso só perguntar por que você está fazendo isso por mim?”
– “Uhm. É uma boa pergunta”.
Os lábios dela pareciam tão atrativos. Que gosto teriam eles?
– “Você sabe que eu nunca levei jeito com garotas”.
– “Eu sei, Tiago. Mas você é diferente, talvez pela pouca experiência que você teve. Mas não se apresse; ainda há um longo caminho a ser percorrido”.
– “Mas eu poderia beijar você aqui mesmo, agora. A gente está voltando no mesmo ônibus, para a mesma cidade; você me entende, você parece ser carinhosa, fofa, amigável. Nós poderíamos namorar, aí eu corro atrás do tempo perdido e…”
Ela tapou meus lábios com dois dedos.
– “Aí está. O tempo vai te ensinar muitas lições, Tiago”.
– “Por que você não me ensina?”
– “Porque eu não estou aqui. Sou só sua imaginação, bobo”.
***
Tive que correr pra não chegar atrasado. O sol já estava se pondo, agora definitivamente, sobre um campo verdinho. Eu subi as escadas com o motorista girando a chave na ignição, e o motor ganhando vida, fazendo barulho. Quando entrei, lá estava a jovem dos imensos olhos negros, ouvindo suas músicas, sem imaginar que um estranho sonhou com ela por uns breves momentos. E, quando a gente já começava a se mexer, indo em direção à minha nova casa, eu pensava no que meu eu interior tinha feito. Não deveria ser tão difícil coisas dessas acontecer no universo das mulheres. Ser gentil, um papo legal, um ato de cavalheiro, e pronto! Iria conquistar minha bela princesa.
Não era?