Cobras com 4G e hamster telepáticos

Capítulo IV

– “E será uma viagem longa?”

– “Chegaremos amanhã à tarde em Cusco, e depois mais algumas horas até minha casa”

– “E eu poderei fazer todas as perguntas que quiser?”

– “Nem sonhe”

Esse foi o diálogo quando praticávamos um furto-cobra: Amaru conseguia ficar incrivelmente fina para adaptar seu corpo a uma chave de caminhonete. Achei que não seria a hora de questionar a moral ali, mas demorei um pouco em entrar na porta do acompanhante.

– “O poder de Amaru é grande o bastante para resolver todas as confusões depois daqui”, me falou Carol.

Quem sabe o Sr. Cobra ali poderia hipnotizar por Wi-Fi os caras do seguro, a fim de conseguir um carro novo para o dono. Se ela falava comigo por telepatia, porque não conseguiria acessar com um 4G?

Quando ela embicava o carro rumo a estrada, resolvi sondar mais do mundo novo que se abria para mim naquele dia cheio de babas e soros.

– “Eu não perguntei como vocês, tipo, os mortais, se conectam com os deuses. Provavelmente, você deve ser uma semideusa poderosa”.

– “Eca! Nada disso!”

Recebi um sibilo mental agradável, como se nosso Grande fosse um gatinho vibrando sua barriga quando recebe carinho.

– “O mundo não é um harém, como conta nas outras mitologias, para os deuses se fartarem. Os deuses existem em um plano mais elevado, e se comunicam conosco através de um sacerdote, ou algum ser humano abençoado e puro. Mesmo assim, é difícil que tenhamos um contato direto com eles.”

– “Por isso nós fomos originados, jovenzinho”, falou Amaru. “Conhece a história da criação do cosmos?”

– “Não tão bem como você, Sr. Cobra.”

Ele até inflou um pouco o peito.

– “Vejamos. Eu estava lá. Antes de tudo, havia apenas o escuro, o caos e as águas que dele emanavam. Eu ainda não existia, estava condensada entre o ser e o não-ser.”

– “Meio difícil isso.”

– “Bom, sua mente não consegue processar esse vir-a-ser. Tudo bem, entendemos as limitações aqui. De qualquer modo, em um certo momento, a consciência de Viracocha se formou das águas frias do caos, e ele gerou toda a criação do mesmo líquido que saiu. Quando tudo estava pronto, atualizou nosso ser para proteger o império que criou para seus favoritos. Eu deveria cuidar do reino dos mortos, Pu do reino dos vivos e Kundur do regime divindático que surgiu com os primeiros filhos de Viracocha: Inti e Mama Kylia.”

– “Esse reino dos mortos é uma espécie de inferno, tipo, católico?”

– “De jeito nenhum. Não funciona como essas crenças. É um lugar de passagem, com alguns tormentos que purificam as pessoas para que subam ao lugar onde Kundur tomava conta.”

Ele pausou um pouquinho, meio que saboreando essas lembranças eternas.

Voltei-me para Carol.

– “Se os deuses aqui são mais comportados, o que você é, teoricamente?”

– “Nós somos o exército privado do Rei. Ele se denominava Inca, filho de Inti, o deus sol, e nós o protegíamos. Com a queda do império, as coisas mudaram um pouquinho, mas as famílias de soldados ainda se mantêm treinando seus filhos”.

– “Treinando pra quê? Estamos em guerra com alguém?”

Ela se espreguiçou.

– “Esse é um assunto para outro dia, Tiago.”

– “Ok, ok. Mas eu ainda não consigo entender porque uma mitologia pode existir e outra não.”

Carol deu uma breve olhada para direita, olhando pelo retrovisor para uma ultrapassagem. Aguardei remexendo os dedos.

– “Tiago, nem tudo tem resposta nesse mundo. Eu só posso servir de testemunha para as coisas que vi. E foram bem bizarras, acredite.”

– “E a própria mitologia é confusa! Há várias versões das lendas, e sempre fiquei curioso de saber qual é a verdadeira.

O Sr. Cobra, aconchegado ainda no ombro da sua guardiã, espirrou em mim.

Desde quando répteis tem espirros?

– “Caramba, fico até com alergia quando me fazem uma pergunta dessas.”

– “Nível de humanidade: 300%”

– “Nível de QI: 32”

Eles ficaram rindo e fazendo mais piadinhas dessas. 

No começo eu dei risada junto. Depois, quando ouvi algo sobre me dar uma rodinha de hamster para eu me divertir, achei que tinham passado dos limites.

– “Ei, Doutores Estranhos, provindos de realidades superiores, o que tem de errado com minha pergunta?”

– “Ela mostra o quanto complexo você é, só isso.”

– “E não é uma coisa boa?”

Amaru apontou o rabinho para mim.

– “Na verdade, não. A simplicidade é de onde tudo se originou, e é pra onde tudo deve retornar. Como um ciclo.”

Ele deu uma risadinha.

– “Isso não é mitologia inca.”

– “Eu sei, eu sei! Assisti no documentário sobre budismo no National Geographic!”

– “O que Amaru está querendo dizer”, emendou Carol, “é que complicamos demais as coisas. E que isso é típico dos humanos.”

– “Sobretudo dos advogados.”

– “Eles existem para isso, teoricamente.”

– “Não é?! Aquelas víboras!”

Agora estava em dúvida da alfabetização de Amaru. Ele estava se xingando?

– “Em todo caso, na maioria das vezes, a verdade não acaba sendo um objeto que podemos malear, como examinamos um inseto em um microscópio. Ela nos envolve, existe em nós e nos preenche, o que dificulta nossa compreensão. Estamos aqui, e é isso que importa.”

Boiei em nível atômico.

– “Ok. Essa filosofia deve ser muito boa. Mas não há uma solução simples pra minha pergunta?

– “Nem sempre haverá respostas fáceis, meu amigo”, falou Carol, agora relaxada, já que pegamos a rodovia.

Resolvi dormir um pouco, já que ainda sentia uma certa dor no pescoço, devido ao acidente. A musculatura devia estar tensa.

Dei um ganido quando lembrei de algo absolutamente importante.

– “Meu Deus, minha irmã! O que vou dizer para ela quando voltar dessa excursão com vocês? Além do mais, ela vai chamar a polícia e vai ficar tudo uma loucura!”

Retorci as mãos, num gesto de ansiedade. Fiquei realmente preocupado com ela me procurando e eu feliz, numa meeting com um ser mais antigo que o universo.

Carol reparou que fiquei inquieto, e colocou a mão no meu joelho. Entortei a cabeça quase uns noventa graus, olhando para fora, de vergonha.

– “Fique tranquilo, Tiago. Amaru vai cuidar de tudo.”

Como deixa, o nosso animal silvestre primordial arrotou feliz.

– “Vocês não imaginam como aquele gambá estava delicioso, minha gente…”

– “Amaru!”

– “Tudo bem, guardiã, tudo bem! Tiago, para sua irmã e familiares, será como se o tempo não andasse. As memórias deles ficam no reino do Condor, e ele costuma fazer uns favores pro irmãozinho aqui.”

Não aliviou de todo minhas preocupações, mas eu teria que deixar minhas preocupações para mais tarde.

Carol se inclinou levemente para o banco de trás, onde a serpente lendária do vir-a-ser eterno tinha se enroscado como um pet fofo.

– “Vamos ir direto para Nazca, onde dormiremos. A pista até lá é bem tranquila; então aproveitem. Porque de Nazca a Cusco é horrível fazer de carro.”

A moça deu partida, e saiu tranquilamente pela rodovia. Enquanto fazíamos o primeiro trecho, não parei de pensar na cobra gigante roncando ali do lado. 

A nossa sociedade tinha banido completamente os mitos. Não havia espaço, numa discussão para o sobrenatural. As pessoas riam de quem pensasse na possibilidade dos dois coexistirem. Teorias da conspiração? Passavam porque era um hobby ou apenas algumas informações que a ciência não queria revelar. Contos de fada? Pacotes para explicar os movimentos do nosso ser interior. Fenômenos estranhos? Sempre tinham explicação na parapsicologia do ser humano. Agora surgia a teoria quântica, de que tudo se limitava a energia. 

Por que tudo tem que girar em torno de nós? Por que não pode haver átomos e fantasmas? Ou porque não pode haver Deus e a natureza? Por que sempre estamos querendo excluir um ou o outro, ou querendo arrumar tudo para que nossa mente pequenina possa compreender?

Nosso réptil sagrado ali devia ser bem solitário. Não é à toa que vivesse para assistir séries. 

– “É bem verdade, Tiago. Amaru tem cada vez mais se encolhido para longe da humanidade.”

Meu santo Viracocha.

– “Espera aí! Você consegue ler todos meus pensamentos?!”

Tentei não pensar em como ela estava linda com o poncho dela voando com o vento forte, ou como as mãos dela pareciam delicadas, agora sem o arco.

Carol riu. Agora com menos força, menos tensão. Um som gostoso de se ouvir.

– “Estar perto dos Grandes confere pra gente essa facilidade. Além de que, quanto mais concentrado você está em um pensamento, mais fica fácil o acesso.”

– “Vamos prometer não fazer mais isso, beleza?”

– “Ora, ora; o que você tem aí tão importante que não pode me mostrar?”

Não gostei dessa sensação de ser lido. E costumo muito fazer isso com os outros.

Ler rostos e posturas, não mentes, galera.

– “Tá, não precisa ficar em silêncio. Não farei mais, juro.”

– “Hum.”

Legal. Agora estava com medo de começar um tema e ela dizer acidentalmente o nome da minha hamster.

– “Você tem uma hamster?

– “VOCÊ PROMETEU!!!”

– “Parei, parei! Desculpa, é meio difícil depois de se acostumar, hehe.”

Fiquei pensando em ursinhos de goma cobertos de geleia de framboesa, pra disfarçar.

– “Então, quer compartilhar comigo verbalmente o que você pensava de Amaru?”

– “Como eu sei que ele não está lendo minha mente também?”

Ela pareceu ficar triste de repente.

– “Ele já não é tão forte como antigamente.”

– “O que isso quer dizer?”

– “Como você pensava uns minutos antes, tanta incredulidade vem acabando com a essência dele. Ele não é lembrado, querido; vem sumindo aos poucos. O poder que ele vai gastando para se manter visível, pra estar com a gente, o cansa muito. Quando ele falou da Pu desaperecida, eu pensei que ela tivesse…”

Carol fez uma curva longa enquanto suas palavras ficavam no ar.

– “É por isso que Amaru está tão preocupado. Ele teme que o esquecimento possa anular o ser dele.”

Ouvi o ronronar da serpente na minha mente. Se eu fizesse um pouquinho de força me concentrando nele, podia senti-lo como quando você coloca a mão na barriga de um gato.

– “E o que podemos fazer?”

A resposta era o que eu já imaginava.

– “Nada muito poderoso. A não ser que você seja capaz de dar um novo propósito a ele.”

E ficamos ali, silenciosos, vendo os quilômetros se esgotarem enquanto o carro se dirigia para o sul.

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