Do caos à paz

Capítulo V

Logo após passar a densa copa de árvores que cobria a entrada da aldeia como um manto espesso, Dastan se viu em meio a uma calamidade. Algumas casas ainda tinham fogo em seus telhados, mas a maioria era apenas um amontoado de cinzas e estruturas carcomidas. As cocheiras dos animais estavam todas vazias, e alguns homens sentados nas portinholas, com a cabeça abaixada entre os joelhos, pareciam estar de luto pela propriedade perdida. Muitas crianças estavam amontoadas nas praças, em silêncio, apenas olhando seus pais que procuravam salvar o salvável. De pé, sobre um carrinho de mão de madeira sem roda, estava um homem de barbas brancas e peito largo, com ombros que dariam dois do pai de Dastan. O jovem poeta não havia visto ninguém tão forte, a não ser no retrato que sua avó fizera de seu bisavô, e Dastan duvidada seriamente da imparcialidade deste.

Ele dava instruções para manter a ordem e tentava elevar os ânimos, dizendo palavras de conforto aos que passavam. Devia ser o chefe da aldeia.

Dastan se dirigiu a ele com decisão, sem vacilar. Conforme foi saindo da sombra que a floresta projetava, alguns poucos notaram o bardo. Primeiro algumas crianças deram o alerta, e alguns dos que trabalhavam pareceram dar atenção ao garoto que vinha com roupas diferentes das deles. A palavra “Pontepotí” surgiu de uma ou outra boca, mas só. A desolação era grande a ponto de cortar a curiosidade.

Quando o ancião percebeu que Dastan caminhava até ele, soltou um enorme suspiro de inconformidade.

― Onde estavam vocês, Pontepotianos, quando a desgraça aconteceu? Seríamos mais fortes juntos; agora, separados, a sua aldeia também não tem chance nenhuma!

― Pontepotí não tem guerreiros, ó, senhor da desolação. E, mesmo que tivesse, não houve aviso de sua desgraça. Não culpe nossa terra pela ferida que nunca poderíamos remediar!

Dastan falou sem titubear, firme como a lâmina de uma espada, mas sem um pingo de grosseria, doce como um pêssego. Sua voz reverberou com ecos nas proximidades. As crianças se reuniram em volta do ancião, que desceu do carrinho e foi ao encontro do poeta.

― Tem razão, jovem. A destruição turvou meu bom senso. Veja você: não nos resta mais nada.

Algumas mulheres choraram com a declaração do seu chefe. O abatimento tomou conta da situação como um véu que cobre o frio cadavérico do morto. Dastan se lembrou das palavras de seu pai: “um homem desanimado é um homem sem alma”. Mesmo cansado da jogatina de maçãs mais cedo, e sem saber exatamente quais seriam os movimentos do inimigo, seja ele quem fosse, ele não poderia deixar a aldeia cair na consternação.

― Ouçam todos que choram por sobre a aldeia queimada; a cítara de Dastan vai contar a história dos primordiais; talvez vocês encontrem o conforto.

A multidão que começava um pranto se segurou, agora atiçada sua curiosidade. As crianças se juntaram aos pés de Dastan, que subira no pedestal onde antes estava o líder da aldeia, que de bom grado cedera seu lugar e se juntara aos outros.

― No começo dos tempos, quando antes não existia o calor e o frio, o fogo e a chuva, o primeiro dos primordiais se entretinha com as lindas pedras que criara. Montava palácios para si mesmo de Jade e Citrino, com placas de mármore branco e bancos de Safira. Fazia esculturas de seus pensamentos da Turmalina mais amarela, e a combinava com a Ágata de veios laranja ardentes. Seu preferido, porém, era o Lápis-lazúli, com seu azul que lembrava sua paz. E assim, montando e brincando com as pedras preciosas que o iluminavam, ele decidiu criar vida das cores e fazê-las conviverem em sua própria vontade e harmonia.

A atenção da vila estava toda presa em Dastan, que dedilhava acordes doces e serenos, num perfeito acompanhamento para sua história.

― E no começo, o Primeiro alegrou-se com sua criação, feliz pela multiplicidade de cores, agora vivas, que circulavam em torno de si mesmo. Mas tão incerta como a plumagem dos pintainhos mais novos, a harmonia seria suscetível ao poder. Das cores alegres e quentes surgiu uma fagulha de guerra contra as cores do pensamento, frias e pouco comunicáveis. Elas batalharam por sete dias e sete noites, e o Primeiro chorou sobre a discórdia. Decididas a terminarem a batalha, cada lado de cor decidiu criar um exército à sua imagem: o vermelho tomou o fogo para si, esquentando o mundo subterrâneo com sua voracidade. O azul, líder das frias, fez o contrário: pintou o firmamento com sua imensidão, e fez frente ao seu inimigo. As outras cores foram tingindo o que lhes estava mais próximo: o amarelo coloriu a fome, o laranja o desespero e o rosa a extravagância; o verde tomou a maldição, o marrom a putrefação e o preto a morte. E num ato de revolta terrível contra o Primeiro, tomaram a luz de sua imaginação e criaram eles mesmos um mundo novo segundo suas intenções. 

Porvir fez um singular chiado que animou ainda mais a história de Dastan, combinando com a quarta invertida que o jovem punha em seu acorde dominante. Não era à toa que a raposa dos dedos pelados seguia o músico: seu senso melódico era bastante apurado. 

Dastan se aproveitou do clima e continuou a narração.

― A guerra tomaria conta das grandes esculturas do Primeiro. Ele viu suas estátuas de Jade e Turmalina criarem vida e batalharem por uma causa que elas pouco entendiam; e quando seus pensamentos de Ágata vermelha duelaram com seus desejos de Lápis-lazúli, o criador tomou a decisão de intervir na guerra. Mas como ele pararia o princípio de seu próprio ser? Como ele tiraria a vida das cores que mantinham a essência do mundo? Dos altos picos de seu trono ele desceu no meio da batalha concreta e parou os generais. Tomando um pequeno punhado de nada, ele moldou o primeiro dos vegetais, uma novidade para as cores. E lhes disse: “Vejam vocês, desgarrados, essa maravilha: ela vive! Não precisa de mim para respirar e produzir seu alimento”. E as cores ficaram emocionadas com o progresso criativo do Primeiro, que dava ao mundo uma nova classe de seres. Mas logo passaram os primeiros rubores da admiração; as cores foram logo querendo conquistar o primeiro vegetal, tingindo-a com as nuances de seu ódio. Mas o Primeiro interviu, proferindo: “Para ele, que será o início de uma linhagem de seres nunca antes vistos, eu darei duas cores: o vermelho poente tocará sua folhagem, mas seu corpo nobre e esculpido será marrom”. E diante dos olhos das cores surgiu um mundo todo novo, com formas e vidas novas e que dividiam a multiplicidade de cores em cada aspecto que tinham. Percebendo como a guerra da monocromia era uma batalha pobre e sem sentido, as cores se renderam aos braços uma das outras, aceitando seu destino de pintar, juntos, todo o universo novo que se desdobrava da imaginação do Primeiro. E assim, do primeiro dos vegetais, conhecido como o Grande Carvalho, ou Tonitruan, na linguagem de Fontenain Blanc, que tem as folhas vermelhas escuras e o tronco marrom esculpido, surgiu a paz e a criação do mundo que conhecemos. Vocês podem não acreditar, mas foi assim.

Todos continuaram em silêncio enquanto Dastan procedia a ária de finalização. A música que desfechava a história era primordial, pois era ela quem comunicava a lição por detrás aos corações feridos. E Dastan conseguiu quando viu, dos olhos tristonhos, brotar a esperança; e dos rostos amuados um forte sorriso nasceu. Como uma faísca que origina um incêndio, eles entenderam que da adversidade pode surgir um mundo novo e melhor.

― Obrigado, amigo Pontepotiano. Você agiu como um verdadeiro filho do Primeiro: criou a paz nos que o ouviam. Que a sombra do Grande Carvalho sempre o favoreça.

  E a aldeia o olhou com benevolência, e Dastan sabia que tinha conquistado novos amigos na jornada que mal iniciara. 

Infelizmente, Dastan tinha um plano a cumprir. E quando contava a história entendeu que não havia alternativa a não ser proceder do mesmo jeito que o Primordial: ele precisava mesclar segurança e insegurança para gerir o sucesso.

― Que bom que gostaram de minha história. Agora que tenho a atenção de todos, precisam saber que o traidor que fez tudo isso com a aldeia ainda está entre nós.

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