Eu deixo meu sedentarismo

Capítulo VII

Ele olhou e volta, como se alguém pudesse entrar do nada, e completar nosso grupo para um quinteto feliz. 

Poderíamos começar uma banda, quem sabe.

E, mais uma vez, eu descobri que as coisas aconteciam sem o menor sentido.

Como uma sombra que fica no canto do olho, que você não pode focar, senão perde ela de vista, aos poucos, na nossa frente, um ponto meio escuro foi ganhando uma silhueta pequena, um pouco encurvada. Ao mesmo tempo que minha barriga parou de relinchar e estropiar, e eu pude olhar para frente concentrado, uma senhorinha com aparência bem maternal estava sentada na cama, com umas roupas nada convencionais. Na verdade, vestia um uniforme de basquete completo: uma camisa larga e regata, um shorts colorido exuberante, e tênis de cano longo. Prendendo seus cabelos já brancos, uma tiara com o logotipo de alguma empresa mundialmente famosa (não estou recebendo o bastante para dizer aqui. Aguardo o patrocínio, hehe). Seu rosto era bem amassado e enrugado, mas seus olhos transbordavam vitalidade. E também um pouquinho de arrogância.

– “Ainda bem que terei alguém para jogar hoje! Já fazia, o quê? Uns duzentos anos?”

Sua voz era anormalmente… normal. Minha avó tinha esse timbre.

– “Com licença, senhora: será que você está no quarto certo?”

Tudo bem. Eu bugo quando me sinto em perigo. E falo algumas bobagens nesses momentos.

– “Talvez vocês que estejam no lugar errado, meu filho. A passagem pelas linhas precisa ser cobrada.”

Percebi que o estranho me olhava com a boca aberta.

O que foi dessa vez? Tenho certeza que meu cabelo estava arrumado, mesmo levando em consideração meus joelhos em modo terremoto.

– “Você consegue falar com ela?”

Ele fez essa pergunta do mesmo jeito que perguntaria pra Jesus como ele andava sobre as águas. 

– “Com licença, madame.”

E lá foi ele, com lentidão, mas decidido, até a velha. E, acreditem vocês: deu um peteleco na testa dela. Que apenas sorriu com o gesto.

Vai saber. Às vezes é moda lá de onde eles vêm.

– “Incrível. As profecias não mentem mesmo.”

Bom, esse foi um dos daqueles momentos em que eu fixo dados na minha cabeça e os deixo para outra hora. Ação: memorizar – profecias.

– “Já faz um bom tempo em que alguém me trouxe tão intensamente. Mesmo naquele fim de ano de 2012, com o encerramento de uma parte do calendário Maia, não me sentia tão… presente.”

Caramba. Calendário Maia em partes. Eu precisava twittar umas ideias dessas.

Ela esticou um pouquinho as juntas, que estalaram como se o esqueleto dela fosse desconjuntado. 

– “Alguém aí precisa de um RPG. Sem ofensas.”

Eu tinha sido vítima de vários fisioterapeutas por anos, já que tinha uma coluna bem encurvada. Mas isso me ajudou muito, e, numa escala 0 a 10, sendo os extremos o concurda de Notre Dame e o The Rock, estava ali no nível 6, quem sabe 7, se tivessem muita boa vontade.

– “Ô, minha criança, eu já fui muito atlética. Quem você acha que ensinou meus filhos Hun e Vucub a jogar?”

– “Quem?”

Virei-me para Amaru, na intenção de conseguir mais algumas informações sobre a mitologia inca. Mas, pela primeira vez desde o ônibus, o Sr. Cobra estava mortalmente sério, sibilando perigosamente.

– “Esta não é sua Terra. Não devia estar aqui”, soltou ele para a vovó treinadora.

– “Ora, não vim porque quis, fui convocada. Esse menino aí é o responsável. Além do mais, você sabe que as Linhas de Nazca são sempre um ponto de interferência, não sabe? Então guarde esse veneninho com você, meu bem.”

Carol olhou para mim, como que me reavaliando. Talvez pensasse que não me deu a devida importância, e eu era, de fato, o vilão da história, porque a mão fez menção de subir para umas das flechas.

Eu não estava entendendo mais nada. Só tinha acordado disposto a dar um passeio legal por Lima, e, em horas, arrumei mais confusão do que aquele mês do halloween (e esse foi louco. Tiveram molotovs de diesel com suco de limão, um trator pilotado por um escocês nervoso e em parquinho de diversões envolvidos.) 

– “Gente, juro, nunca vi o Sra. Outdoor em toda minha vida.”

Ela pulsava com seu uniforme em cores néon. Nada mais justo o apelido que dei a ela. 

– “Mama, o que você quer pela passagem segura?”

Assim falou nosso amigo misterioso. Eu, pessoalmente, achei meio besta ficar dando moral assim pra uma desconhecida que se materializou do nada. Mas quem está falando é o cara meio apaixonado por uma estranha que gosta de andar descalça. 

Então, relevem.

– “O que eu sempre quero: um jogo.”

– “Aí falou minha língua, Sra. Vovó. Eu top…”

Muitas coisas simultâneas aconteceram naquele quarto. Algo voou na minha cabeça (acho que foi a sandália da Carol); Amaru tentou jogar uma toalha em mim, mas, como vocês devem ter percebido, sem mãos fica um pouco difícil; o estanho galã de cinema da Faria Lima deu um tapa na própria testa; e a senhorinha ali sorriu como uma criança.

– “O desafio foi aceito. Que o jogo comece!”

Eu e minha boca grande. Sempre levando a gente para um perigo diferente.

Quando era pequenino, apenas um brotinho florescendo na vida, eu aceitei o desafio de um daqueles tios loucos. Ele era a irresponsabilidade em pessoa; mas eu, com meus oito anos, não sabia disso. Apostou comigo um cachorro-quente que eu não tinha coragem de descer o quintal da minha casa escorregando no detergente. Minha mãe não estava em casa, então aproveitei para vencer. 

O resultado foi o dente da frente quebrado no meio. E minha dentição já era permanente. Foram quase dois anos indo ao dentista para consertar aquilo de modo a ficar bonitinho. Se eu sorrio muito, as pessoas ainda podem perceber a linha que divide a parte real da falsa, feita de massinha; isto porque colocaram meu dente numa xícara de leite, na geladeira, e beberam depois. Quem foi, nós nunca descobrimos. Taí uma coisa para perguntar a Amaru, se nós voltássemos vivos do desafio que eu aceitei na ingenuidade.

Nós fomos todos transportados, como se nos pegassem pela calça, na parte de detrás, e jogados numa espécie de vácuo. Estava tudo escuro, mas eu ouvia ainda a respiração dos outros.

– “Tiago, você e sua boca grande.”

Carol devia estar ali do meu lado, pra voz dela soar tão clara.

– “Mantenham a calma.”

Era o estranho.

– “Peraí, você está sofrendo junto com a gente? Cadê seus superpoderes de Alien?

Ele não respondeu, o que eu achei bem ofensivo. Não era só porque eu tinha feito a burrada de concordar com um ser maligno vindo de outro universo sem nem parar para pensar, pondo a minha vida e a de meus conhecidos em risco, que devia ser ignorado.

De repente, as coisas foram entrando em foco. Como se alguém estivesse editando uma foto no computador. Umas cores apareceram, então suas formas; e, por fim, quando me dei conta, estávamos numa quadra de basquete como aquelas que passam na TV. A vovó estava na arquibancada, num lugar bom para assistir ao que é que fosse se passar.

– “Devo supor que vocês sabem as regras.”

Por mais longe que estivesse, ela soava como se falasse na nossa frente.

– “O jogo de bola condenou seus dois filhos a morte insana. Então, não; não sabemos as regras.”

Aquilo que Amaru soltou me deixou apreensivo. Morte insana não significava coisa boa. Talvez só em algum reino Viking mitológico, ou talvez nos jogos escoceses.

– “Meus filhos infelizmente foram enganados quando faziam o que mais amavam. Mas meus netos os vingaram, fiquem tranquilos.”

– “Você mandou seus netos para cá, não tente enganar a gente!”

Amaru batia um papo com ela como se fossem grandes comadres que se conhecessem bem. Eu, pelo contrário, estava como um telespectador daqueles torneios de ping-pong: pra lá, pra cá; pra lá, pra cá.

– “Falando entre amigos aqui, Amaru, eles lembravam demais a desgraça que tinha sido afligida em meus filhos. Além do mais, sua mãe era do mundo dos demônios. Não queria uma norinha assim, vindo comer meus bolos de mandioca. Mas eles fora bem-sucedidos e é isso que importa. Vamos a partida agora! Preparados?”

– “Espera! O que vamos jogar mesmo?”

– “Basquete, Tiago, basquete!”

Minha confusão só aumentava. O jogo de basquete era tão antigo assim? E como alguém morria insanamente numa partida de basquete?

– “Eu explico depois. Se concentrem em ganhar, senão…”

Amaru saiu da quadra e foi se sentar no banco do treinador. De novo, sem mãos, sem jogar coisas.

Então ficamos nós três em formação: Eu, Carol e o estranho.

– “A propósito, meu nome é Pedro.”

– “Você lê mentes também?”, perguntei assustado.

Estava ficando de saco cheio de pessoas fuçando minha cabeça.

– “Não. Só estou me apresentando.”

– “Ah.”

Carol revirou mais uma vez os olhos para mim. Não era o primeiro, e tinha certeza que não seria o último daquele dia. 

– “Pessoal, pra sorte de vocês, jogo basquete desde os dez. Fiz escolinha e tudo mais; então sigam minhas ordens, ok? Falando nisso, o que acontece se a gente perder?”

Mais uma vez fui ignorado. Dia difícil.

– “Alôoooo… vocês me ouv…”

– “A morte insana, Tiago. Agora, pelo amor de Viracocha, cala a boca.”

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