Lutar de Sola não dá XP

Capítulo V

Depois de mais ou menos uma hora de viagem, Carol falou as palavras mais temidos pelos simples mortais:

– “Tiago, temos que abastecer.”

– “E…?”

– “Quem você acha que vai pagar?”

Ela sorriu enquanto dava seta para entrarmos num posto do outro lado da pista.

– “Ninguém mandou você roubar um ser sagrado”.

Como se eu fosse um power ranger pra poder ter essa autoestima toda.

Ela encostou-se à primeira bomba que vimos e pediu que completasse o tanque. Logo em seguida, desceu do carro para olhar o marcador.

Eu me juntei a ela, ficando um momento em silêncio, vendo os numerozinhos subir com velocidade.

– “Eu achava que seres míticos fossem completamente diferentes.”

Carol olhou pra mim, intrigada.

– “Sabe, tivessem vozes graves e falassem devagar, com sabedoria. Mas Amaru… bem, parece que ele não se enquadra muito nisso.”

A bomba pulsou, o marcador parou. O frentista apareceu, retirou a mangueira e anotou o preço num papel. 

– “Vem, temos que ir até ali pagar.”

Carol me puxou pela mão, e eu, juro, senti meu corpo aquecer uns cinco graus.

– “Tiago, como tudo que existe, Amaru sofre influência do tempo e das pessoas com quem convive. A divisão que ele te contou, a respeito dos níveis do mundo mortal, acabou se dando em nível geográfico também.”

Entramos na fila e esperamos nossa vez.

– “Amaru cuidava da faixa litorânea, o Puma dos desertos, e Kundur das montanhas e picos. Viver ali, nos grandes centros populacionais de hoje, acabou deixando nossa serpente mais… descolada, digamos assim.”

– “Mas os incas não tinham certo medo do mar?”

Ela virou o corpo inteiramente pra mim. 

– “Esse é justamente a questão, Tiago. Os incas criaram um império gigante; toda costa pacífica sul estava, senão sob seu domínio, pelo menos sob sua influência. Mas os grandes achados foram Macchu Pichu, as linhas de Nazca, etc. O mar foi esquecido; e com ele, as tradições dos grandes navegantes também se foram. E hoje, até mesmo nós, guerreiros do império, fazemos pouco caso do oceano.”

Quando me entregou o pequeno papel para eu acertar a conta, seus olhos estavam baixos, e a testa, enrugada. Esse assunto parecia ser um ponto delicado, e talvez houvesse algo que ela não queria me contar.

Paguei com o milagroso cartão de crédito internacional da minha irmã, que eu tinha pego “emprestado” naquela manhã (ela falou alguma coisa enquanto se pegava com o Roger. Eu supus que era uma permissão) e voltamos sem conversar para o carro.

– “Tudo certo, turminha?”

Não pude evitar de sorrir. Amaru tinha umas gírias antigas.

– “Sabe como dizem: tanque cheio, carteira vazia!”

Ninguém riu da minha piada. Ouvi um suspiro. Provavelmente de Carol.

Depois disso, as longas quatro horas restantes se passaram devagar. É nessas viagens que você entende o que Einstein quis dizer sobre a relatividade do tempo.

Ou não, caramba. Eu tinha só 21 anos. 

Mas já estava fazendo estágio. Respeitem-me.

Enfim, quando o relógio já estava para marcar dezesseis, vimos a pequena placa: Nazca – 50 km, e comemoramos. 

Amaru já tinha contado toda sua vida de réptil sagrado para mim. Alguns episódios sobre ele contendo maremotos gigantes, aquecendo as águas no período errado (nem conto pra ele quantos problemas ele trouxe) e como ele enfrentou um javali gigante que uma vez conjurou.

– “Sabe como é, o que não mata te fortalece”, falou ele, com a boca cheia, comendo aquelas minhoquinhas cítricas que compramos num posto (bexiga cheia) há poucos minutos. “Ele até tentou rivalizar com as minhas presas, mas as danadinhas aqui são bem malvadas”.

Por alguma razão estranha, o Sr. Cobra gostava de comer doces com o formato de seu corpo. Dizia que se sentia bem, já que eles lembravam como era querido pelos humanos. Eu queria tentar explicar as abismais diferenças entre répteis e anelídeos (cortesia das aulas de biologia), mas Carol me lançou um olhar mortal. Desisti, em nome da minha segurança.

– “Enfim, chegamos na famosa cidade de Nazca. Lar das linhas mais entranhas do globo.”

– “Amaru, você tem alguma explicação ancestral pra dar sobre este canto aqui?”

Ela fuçava o saco que já não tinha senão açúcar.

– “Bem, até pra nós, este lugar não é uns dos melhores. A Pu tinha uma ligação especial, já que, teoricamente, esse é o domínio dela. Eu apenas tenho um sentimento estranho.”

Começamos a ver as plantações de azeitonas nas beiradas, e algumas casinhas esporádicas que apareciam.

– “Como assim? Que sensação é essa?”

– “Sabe quando você está esperando um download baixar? Uma mistura de impaciência e incerteza? Esse sentimento que as linhas passam para mim.”

Uau. Até pra um ser mítico formado das águas do caos inicial existe um mistério insondável. 

Acho que isso faz a existência ter mais graça. Como iríamos em frente se nenhum novo conhecimento nos motivasse?

– “E vamos dormir aqui? Parece cedo para mim. Que tal continuarmos a viagem, sei lá, até umas 20h?”

Foi a vez de Carol tomar a fala.

– “Nem pensar. A partir daqui, começa a subida na Cordilheira. Estradas com muitas curvas, penhascos em cada cantinho. Não, o melhor que podemos fazer é dormir cedo e acordar logo quando o sol raiar.”

– “Ok, capitã.”

– “Não sou nenhum oficial, Tiago.”

– “Mas você disse que é do exército imperial. Deve ter alguma promoçãozinha.”

Ela riu.

– “Não funciona assim conosco. Talvez há, sei lá, uns oitocentos anos, pudessem ter várias patentes. Mas hoje somos poucos. Independentes, eu diria.”

– “E, no começo do império”, continuou Amaru, “o Inca respeitava a zona de conforto dos próprios guerreiros que ele dominava. Se eles invadiam uma aldeia, mantinham, com muita observação e algumas miscigenações, os seus clãs militares, de modo a evitar conflitos desnecessários. Os soldados rasos, aqueles que nasciam já sob a tutela dos filhos do sol, eram chamados de Awqaq runa, que usavam lanças. Mas a família da Carol, uma Chanca, só treinava com maças, e se especializaram nela. Outras tribos puxavam seu combate mais para arcos, fundas, facas pequenas, dependendo da etnia.”

– “Então você usa maça também, mocinha? Não tinha me contado isso.”

Olhei para o lado, esperando ver uma Carol risonha, mas um silêncio frio se estabeleceu. 

– “O que foi? Disse alguma coisa errada?”

Amaru tossiu.

– “Bom, na família de Carol…”

– “Amaru, não quero falar sobre isso.”

A serpente se calou, sibilando baixinho. Virei meu corpo para a menina que dirigia.

– “Você tem muitos segredos.”

Ela bufou.

– “E quem não tem?”

Mordi meus lábios, olhando particularmente para os pés que trabalhavam nos pedais do carro.

Me fez lembrar do primeiro combate dela, naquela manhã.

– “Por que você tirou o seu calçado quando foi lutar? Era só porque a grama estava fofinha?”

Dessa vez, Carol manifestou um sorriso surpreso.

– “Você é bem observador, né?”

– “Disponha”

Amaru voltou a se animar do cantinho onde ele se encontrava.

– “É uma praxe dos guerreiros sagrados do império”, falou ele. “Você sabe quais são os principais alimentos do Peru?”

O que isso tinha a ver com aquilo, talvez eu nunca descobrisse.

Mas fui na nova onda da serpente.

– “Acho que batata-doce, batata… ah, milho não pode faltar, a famosa Cancha Peruana.”

– “Para um brasileiro você até que dá conta do recado, hein?”, brincou Carol.

– “E tem aquela bebida também! O tal de Pisco.”

– “Aí você acaba desviando um pouco, Tiago”, riu Amaru.

Olhei para eles, incrédulo.

– “Mas essa bebida tem o nome em Quéchua, a língua do povo Inca! Como não pode ser tradicional de vocês?”

– “É uma bebida disputada pelo Peru e Chile, e claro, é tão importante para nós quanto a caipirinha pra vocês”.

– “Ah, deuses, que saudade de uma caipirinha de kiwi!”

Amaru estava lambendo os beicinhos.

– “Ei! Desde quando uma cobra mítica toma bebidas alcoólicas?”

– “Alôo! Globalização, jovem.”

Como se isso explicasse tudo.

– “Mas o Pisco é um destilado de uva, cujas primeiras videiras vieram com os espanhóis. Não tem muito de Inca nele.”

Mostrou sabedoria, nossa guerreira.

– “Mas, como você nota, toda nossa cultura principal vem da terra. O solo sempre foi vital para nós. Sempre deu tudo o que as primeiras gerações precisavam. Depois começamos a cultivar bois e frangos, que completaram a alimentação.”

– “Peraí. E as alpacas? Não são boas no prato?”

– “Eca!”

– “Tiago!”

– “O quê? As alpacas são nativas daqui. Eu entendo que comam elas…”

– “NÃO!”

Os dois falaram juntos, e caíram na gargalhada depois.

– “Estou perdidinho aqui.”

– “Vamos do começo, então.”

Carol suspirou profundamente.

– “Nos Andes, existem quatro tipos de camelídeos. O que foi?”

Comecei a rir da palavra. Camelídeos. Imaginei mini camelos com sotaque Britânico.

– “Nada. Continue, hehe.”

Ouvi algo como homens antes dela continuar.

– “Alpacas, lhamas, vicunhas e guanacos. Esses dois últimos são menorzinhos e selvagens, não domesticados. Isso significa que pulam por aí pelas montanhas, com lãs lindas. Eles sempre foram caçados por isso, mas, atualmente, existem penalidades severas para caçadas, graças a Viracocha.

– “Ótimo”

– “As alpacas e lhamas, porém, são domesticadas. A primeira é mais argentina que peruana, e seu pelo deve ser tosado com frequência, já que cresce muito. É delas que vêm a super lã andina. Por isso, NÃO COMEMOS ALPACAS”

Ela falou bem devagar a última parte.

– “Tá, entendi, entendi.”

– “As lhamas, pelo contrário, são completamente peruanas. Vivem em nossos altiplanos. Elas têm uma lã boa, não tanto como a alpaca, e podem aguentar grandes distâncias com um peso muito grande.”

– “Então vocês montam lhamas?”

– “Podem ser montadas sim, mas não queira fazer isso.”

Amaru sibilou contente.

– “Por que não?”

– “Porque são animais que se irritam fácil. Aí elas cospem em você. Simples assim.”

Bom saber.

– “E a carne de lhama? É comestível?”

– “Alguns restaurantes são famosos por seus pratos de lhama. Há uma certa comercialização dela, tanto para carne quanto para couro, mas não era assim para nossos ancestrais. Eram usadas mais como meio de transporte mesmo.”

– “Nem podia imaginar que existia tanta diversidade assim.”

– “A família de Carol tem uma lhama!”

Parecia que Amaru tinha se segurado ao máximo para contar esse bafafá.

– “Você vai poder conhecer a Marcela. Um amor de lhama.”

Achei o máximo estar fazendo tantos amigos assim.

– “Bom, a gente fez esse desvio todo para eu lhe explicar porque lutamos descalços”, lembrou Carol.

– “Verdade! E ainda não entendi o porquê disso. Além de achar que é super perigoso por poder machucar o pé ou o tornozelo numa hora dessas.”

– “Talvez no império inca, lá pelos anos 1000 d. C., fosse. Mas como lutamos hoje mais batalhas míticas do que físicas, qualquer apoio extra natural se torna uma vantagem.”

Comecei a ver muitas pessoas e seus comércios. Carol se dirigia para frente com segurança, talvez em direção a um hotel que já conhecesse.

– “Nossa herança primordial vem do solo. Ele nos sustenta. Pacha Mama é tão antiga como Viracocha. Ela nos transmite sua fertilidade, sua prodigalidade, quando estamos diretamente em contato com ela. Descalços, ficamos mais fortes, mais rápidos, mais perceptivos.”

Achei essa característica muito especial, dentro da mitologia inca.

Hoje realmente foi um dia de perder o fôlego de tantos descobrimentos. Enfim, eu achei que as coisas tinham dado um pause, já que eu farejava uma cama gostosa, e uma noite repousante e alegre.

Mas a produção não seria tão benevolente assim, seria?

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