Memórias de um passado presente

Capítulo IV

A fogueira crepitava pouco animada. Já fazia um tempo que as grandes labaredas que assavam espécie de marshmallow feitas de pinha (eu sei, bizarro, não?), mas que conseguia ficar crocante sem estourar sua boca tinham diminuído. Caçarola dançava com uma menina que eu desconfiava ser Harriet, aos berros de Aris, que parecia fazer um beat box completamente sem constância rítmica.

Eles eram a humanidade. Quem sabe dali a uns dois mil anos eles encontrassem, na pequena ilha, cascas amassadas e marcas de pés e pensassem que uma nova era de bronze tinha se instaurado. 

– Quer dizer que vocês se reuniam num lugar escuro, cheio de desconhecidos, com uma música alta, que impossibilitam conversar, e tentavam paquerar lá? E ainda queriam  que desse certo?

– Falando desse jeito parece ser idiotice mesmo.

Brenda riu, zombeteira, aproveitando para jogar mais uns pedaços de madeira para a fogueira não se extinguir.

– Quer dizer que o Sr. Tiago aqui já conquistou muitas meninas numa balada, hein?

Não sei se o verbo certo era “conquistar”. Estava mais para “correr atrás como um papagaio constipado e receber negativas”. Mas eu apenas acenei com os ombros, com uma certa indiferença.

– Com certeza era mais fácil sobreviver àqueles tempos. Aguentar adolescentes em época de acasalamento se resolvia com um tapa ou soco. Quanto a isso aqui…

Num gesto meio vazio, mas que indica tudo, Brenda apenas forjou um sorriso triste.

– Deve ter sido difícil.

– Foi muito mais para o Thomas. Ele se chocou muito quando percebeu que tinha planejado tudo, e depois por todos os testes que ele teve que passar, dentro e fora do labirinto. Eu digo por que assisti até a hora de entrar no experimento. Não me orgulho de nada daquilo, a propósito.

– Não tenho dúvida.

– Mas a Dra. Paige tinha uma visão, uma meta. Ela soube vender bem o peixe. E, no final, ainda conseguiu fazer a coisa certa.

A brisa levou os últimos ecos de um Caçarola brincalhão. De repente, éramos só nós dois na clareira.

– Eu queria que Thomas se desse conta disso. Ele cometeu erros, teve suas razões ou não, pouco importa; o que ele fez depois para tentar consertar foi quase que o pagamento de tudo.

Brenda chutou uma pedrinha pra longe, com os coturnos bem amarrados.

– E, depois, Teresa…

Ela inspirou profundamente. E eu percebi que havia muito peso sobre os ombros de todos ali.

– Teresa se foi, Brenda, e não há nada que você ou o Thomas podem fazer para mudar isso. 

– Diga isso ao espírito dela.

– Quem sabe ela não está ouvindo? Talvez os mortos ouçam tudo que se diz dele. Talvez cada sussurrar de desculpas seja para eles um alívio.

Brenda murmurou algo que não entendi; tudo bem, ela disse mais para si mesmo do que para mim.

Agora a brisa que soprava do mar para a clareira era mais forte, mais salgada, mas fresca.

– Nós todos aqui passamos por coisas que nunca deveríamos ter visto. Alguns com uma idade tão jovem que dá pena. Mas o post-crime parece ser pior, sabe? O mundo inteiro, tão vasto, tão imenso, tão podre. É difícil se convencer de que tudo acabou mesmo. Os shoppings, os parques, as piscinas, as férias. E por lá, apenas o reinado do vírus.

O que eu me perguntava interiormente era o que teria acontecido com minha casa, meus pais, meus amigos, minha faculdade.

– O que me leva a perguntar de novo, Tiago: como você existe?

Seus olhos pretos e penetrantes me perscrutavam, duros, firmes, nebulosos.

– E como você não está surtando por vir parar aqui? Se eu tivesse uma balada para ir no final de semana e de repente acordasse com cranks me servindo café, eu provavelmente não falaria por um mês, isto se eu não me entregasse logo para servir de prato principal.

– Aí que tá, Brenda, eu tenho esse… essa coisa, eu não sei bem como funciona. Mas eu sempre acabo voltando pro meu mundo, vamos dizer, assim que eu faço alguma coisa. É sempre assim.

Ela não parou de me olhar nem por um segundo.

– Tá, vou fingir que isso não parece um sintoma de negação extremo. Mas, entrando na suas possibilidades, o que você deveria ter achado aqui? Porque parece apenas que você serviu de conselheiro amoroso.

Eu ri, enquanto ela pegava um graveto e começava a cavar o chão, numa tentativa de disfarçar o sorriso que deu.

– Sabe quando você andou tanto num quarto que, mesmo no escuro, você sabe que tem um móvel aqui, outro lá, a cama fica nesse canto, a prateleira no outro? 

– Não, mas entendi a metáfora.

Eu até pisquei várias vezes, repetidamente. Um certo tic que tenho quanto percebo que falei coisa errada.

– Desculpa.

– Não é sua culpa ou não ter tido um quarto, então vai em frente.

Engoli em seco.

– Bom, eu meio que, à força de viver umas coisas dessas…

Apontei para o nosso entorno, e Brenda fez um sinal com a cabeça de que estava entendendo.

– Eu consigo sentir, quase como um solavanco no estômago, um embrulho, quando vai acontecer algo ou quando o momento vai ser importante depois. Muito estranho.

– Demais. Mas e aí, o que é conosco?

Respirei forte, sentindo que a falar, a coisa se concretizaria, e eu deveria lutar por ela.

– Quando Thomas falou comigo na beira da praia, me deu um formigamento quando soube da existência do propulsor de sinapses. 

Não sei se foi pura consciência, mas um trovão rutilou ao longe, e o tempo pareceu começar a se fechar.

Brenda olhou para cima, como que testando o temporal a desabar. Ela era uma guerreira; dava pra ver que se sentia melhor prevendo um confronto e se preparando para ele do que na paz que parecia sem fim.

– E o que você poderia fazer com a pistola? Ela, nós testamos, não estoura cabeças provocando sinapses demais; é inofensiva. Não é uma arma de guerra.

O céu, antes estrelado, começou a se toldar mesmo. Nuvens pesadas, ar abafado, eletricidade no ar.

A moça se levantou, limpando a roupa. Estendeu a mão pra mim depois.

– Vamos que hoje vai cair um temporal daqueles. Temos algumas medidas para tomar, já que nossos abrigos não são os mais perfeitos. 

Me apoiei nela para ficar de pé, flexionando bem os joelhos para tirar deles o torpor. E enquanto voltávamos para o alojamento, olhei para a nova pedra da clareira. Os nomes assinados estavam ali; Thomas os olhava, numa prece silenciosa. Brenda bufou algo, e vi que olhava para lá. Parou, cruzou os braços e mordeu os lábios.

– Vá na frente, Tiago, já te alcanço.

E saiu em passos decididos até o rapaz. Fiquei olhando por um breve momento, mas me senti um intruso. Mas antes de dar as costas pros dois, ali no entroncamento mais escuro da ilha, onde uma árvore e uma rocha quase que se colidiam, uma coisa tremulou. Parecia uma sombra humana, um relógio num pulso magro, observando-me.

***

Não me perguntem, por favor. Eu também não entendi nada, já que estava voando num avião de volta a Fortaleza. Com pilotos normais, passageiros normais, e aeromoças normais. 

Quando acordei, estava no mesmo alojamento que dormi, mas que descobri sendo de um hotel em Fernando de Noronha. 

Alguém pode me explicar isso? Até onde sei, não há pinheiros em Fernando de Noronha.

Ah, e nem um grupo de refugiados que lutaram contra uma infecção viral mundial que também nunca existiu.

Apenas descobri que precisava pagar a conta de uma noite (lá se foi meu passeio de lancha pelo mar da costa cearense), pegar um avião no pequeno aeroporto que há lá (lá se foi uma semana de lanchinhos e cafés chiques) e que, em apenas umas três horas, eu estaria tomando uma água no lugar onde fui resgatado por um corredor de labirintos de um ataque de zumbis canibais. 

Não fazia sentido nenhum, até porque a ilha de refugiados era perto do Alaska, segundo nosso querido livro Maze Runner. E não havia pinheiros em Fernando de Noronha, pelo amor de Deus!

A pergunta que eu me fiz no resto daquelas férias não foi: “real ou não real?”, porque eu sabia que tinha acontecido. Meus joelhos ainda estavam bambos daquela corrida desesperada e minhas roupas ainda com o cheiro de fogueira e pinhas assadas doces. Eu me questionava o porquê tinha ido parar lá (o como eu nem tinha mais intenção de desvendar).

Tive uma porção de aventuras dessas. Desde que eu fora para o Peru, minha vida tinha sido uma montanha russa de histórias diferentes. E depois da decepção que eu tive, muito grande por sinal, eu prometi para mim mesmo que não voltaria para lá. 

Mas estava na hora de eu procurar alguém que eu sabia ter um dedo nessa bagunça.

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