No calor de um sonho

Dia IV

Do calor para o frio, do frio para o calor: essa era minha rotina há uns três meses. Aquele sol do meio dia torrava a cabeça quando ia fazer uma tentativa para anunciar um produto; depois de alguns não’s saudáveis, você entrava no carro que estava com o ar-condicionado ligado ao máximo, porque seu colega não queria passar calor… esta é a vida de um representante de vendas. Você vai para um lugar longe, quase desértico, numa terra de ninguém, oferecer algo que poucos precisam e muitos têm de sobra. Quem consegue sorrir nessas horas sabe bem o segredo da felicidade.

Casa número 191: verde, portão com grades, um pequeno gramado à frente, dois cachorros pequenos fazendo arruaça, casa de esquina. Quer apostar? A moradora devia ser casada, ter por volta de 40 e tantos anos, provavelmente loira, ainda trabalhava, e com algo intelectual: ou professora, ou secretária, ou nesse ramo. Filhos? Talvez dois, um casal, pelo jeito. 

“Nossa, Tiago, pra que inventar tudo isso? Como você poderia saber a vida da pessoa somente olhando a casa dela?” (Sherlock Holmes vive!) Sinceramente, leitores, depois de muita visita, você acaba tirando algumas médias. 

Sem campainha ainda? Hum! Está melhorando… Vamos às palmas.

– Ô de casa! Boa tarde!

Depois de uns três gritos, apareceu alguém na janela.

– Pois não? Deseja falar com quem?

Não vou contar todos meus segredos de persuasão, mas o fato é que dali a três minutos, estávamos entrando meu colega e eu na sala de nossa possível compradora. Era a hora de mostrar o catálogo, função do meu companheiro; meu papel agora se limitava a sorrir e parecer atencioso (Esse é o ‘Tchan’ da questão!). Além de ser cativante, minha outra tarefa era brincar com o cachorro da família, quando ele começava a cheirar todo mundo e atrapalhava o encerramento do caso.

Ponto para o Tiago: era coordenadora de fundamental. Mais um ponto: tinha 45 anos. E maaaaais um ponto: Tinha dois filhos; um caçula, que foi jogar futebol (afinal, era sábado a tarde) e uma filha terminando a faculdade. 

– Larissa, vem cumprimentar os moços que estão visitando a mamãe…

E lá estava eu meio aéreo, pensando em como seria bom ter um ventilador gigante no rosto, quando ela entrou na sala. 

A primeira palavra que veio a minha cabeça: autocontrole. Senão minha boca ia ficar aberta.

Qual era sua altura? Não me lembro… Um pouco mais alta que eu, definitivamente mais de 1,80m. Pele branca clara, corpulenta, olhos grandes, castanhos-claro, cabelos quase alourados, liso, grande, que descia até as costas. A boca era cheia, bem contornada, e o nariz era quase inexistente, apenas um pequeno ponto que parecia aumentar ainda mais seus olhos, tornando-a de uma fofura enorme. Vestia uma espécie de vestido verde claro, com florzinhas vermelhas estampadas. Condizendo com o calor enorme, uma roupa curtíssima, bem acima dos joelhos, deixando suas pernas compridas a mostra. 

– Oi! Tudo bem?

Consegui balbuciar algum gemido que poderia ser interpretado por ‘Oh, meu Deus!” e voltei a concentrar minha atenção na venda. Mas a Larissa não facilitou: sentou-se no sofá à frente, junto com a mãe. 

Eu juro que pensei em corvos tenebrosos, em imensos cardumes de peixes suavemente nadando pelos oceanos, orquestras sinfônicas tocando melodias de Bach. Mas minha imaginação foi mais forte que eu. Era a doce Larissa andando por um campo de papoulas e lavanda pra cá e dançando ao som de Whitney Houston pra lá, nesse cérebro cheio de fusíveis tortos. 

– Você está bem?

Larissa me arrancou do estado de torpor que eu estava, ao sentar-se ao meu lado. Ah, que perfume… parecia rosa? Margarida? Violeta? Sei lá.

– Oh, sim, sim, estou bem. Mas… cadê todo mundo?

Só estávamos ela e eu na sala. Quando o pessoal tinha saído? Será que eu tinha ficado hipnotizado? Constrangedor.

– Aloooou? Você ainda está aí? Minha mãe foi com seu amigo assinar os papéis na cozinha. Ela está oferecendo um sorvete. Quer? Eu vou buscar…

Ela fez menção de levantar-se, mas eu fui mais rápido.

– Não! Quer dizer, não quero sorvete, não. Muito obrigado.

Ela já estava meio de pé, mas caiu de novo no sofá. Com um sorrisinho no rosto.

– E você não sente muito calor com essa roupa? 

A gente tinha de se vestir a rigor, com roupas sociais, para representar bem a empresa.

– Sabe, é quente pra valer, mas chega uma hora que acostuma. Aqui é bem quente, mas já peguei uns lugares mais terríveis, tipo Cuiabá às 15:00h. Quando você chega próximo a cidade, tem um plaquinha assim: “Cuiabá a direita. Inferno a esquerda”…

Larissa deu uma risada cristalina. Se mexeu um pouco no sofá e se sentou mais próximo a mim. Senti aquela espécie de onda magnética expansiva que afeta seus neurônios… um PEM sentimental.

– Então você viaja muito? Deve conhecer um bocado de lugar aqui no Brasil.

– Bastante pra minha idade, isso eu posso dizer… acho que já estive em uns oito estados… Uma coisa legal foi quando tive que ir ao Nordeste; acabei fazendo um trajeto de volta pelo litoral, e parei nas capitais para conhecer as praias mais famosas do Brasil.

– Legal, cara! Eu ficaria bem feliz em fazer o que você faz… Viajar é meu sonho. Conhecer gente nova, costumes novos, lugares novos… Não só estudar e tal. O que você acha?

Larissa mexeu no cabelo, colocando atrás da orelha. Meu Deus.

– Sabe, Larissa, muito do que eu faço é porque foi escolha minha. Mas não é o tipo de coisa que você deseja pra sempre. Quando as coisas melhorarem, eu espero viver uma vida fixa em algum cantinho do mundo, indo a mesma faculdade todo dia, falando com os mesmos amigos…

– Uma namorada?

– Ah?… Quer dizer, claro… é…. na medida do possível, né? Quando achar alguém especial, ou algo assim.

– Me dê sua mão.

Ela não esperou e puxou meu braço… Sua mão era macia e delicada. Com dedos longos e finos. As unhas não estavam pintadas, mas estavam bem cuidadas.

Preciso dizer que meu coração estava a mil?

– Tiago, eu sempre digo que a mão de uma pessoa diz muita coisa, sabia? Não se ela vai viver muito ou se ela é trabalhadora porque tem calos… não desse jeito. Eu enxergo o futuro através dela. Como ela é, como ela se comporta, o que a espera.

– O que há para mim, Larissa? 

Ela continuava com minha mão entre as suas. Ela suspirou, frisou a testa e levou nossas mãos à altura dos meus olhos.

– Gentil, muito educado, inteligente… inseguro? É, um pouquinho. Também não é muito determinado. Tudo isso leva a apenas uma conclusão…

– Poderes femininos? Porque você acertou demais…

– Não, seu bobo. Sou muito observadora, desde nova, e me acostumei a associar o comportamento das pessoas com o tipo de mão delas. Assim, acho que fui tirando uma média: quem tem mão desse modo, provavelmente é desse jeito.

Ela soltou minha mão e eu cocei o rosto, tentando mascarar minhas emoções que estavam em debandada.

– Me fale sua conclusão.

Larissa apoiou sua mão no meu joelho. Já estávamos ombro a ombro.

– Já te direi, Tiago. Mas antes precisa acabar com sua timidez. 

O cabelo dela estava batendo com suavidade no meu rosto.

– Ah… sério?… E porque você a-a-cha isso de mim?

Ouvi só um sussurro.

– Porque você ainda não me beijou, mesmo depois de todas minhas deixas.

Ah, danem-se protocolos. 

Puxei seu rosto pra perto do meu, e encostei meus lábios nos dela. 

Enquanto sentia seu perfume cada vez mais. 

Enquanto sentia seu cabelo sedoso.

Enquanto minhas mãos buscavam sua cintura, puxando-a mais para perto. 

Enquanto beijava Larissa.

***

– Muito obrigado, senhora! Não fez mal negócio! Qualquer coisa, tem nosso telefone marcado aqui! 

Ainda estávamos sentados naquele sofá quente: eu e meu companheiro. A mãe estava junto com Larissa do outro lado da sala, tendo assinado tudo ali mesmo. 

A visita estava terminando.

Levantamo-nos para cumprimentar nossa nova cliente. Cumprimentei Larissa com um aceno. Ela deu um tchauzinho distraído, assim como distraída ela ficou na negociação toda. 

O carro estava um forno. Depois de abrirmos as janelas e meu colega dar partida, acenei novamente para a família que deixaríamos para trás. A senhora me respondeu efusivamente. Larissa nem estava lá. 

Enquanto o ar-condicionado gelava um pouco nosso ambiente, e o carro tranquilamente transitava por uma cidade deserta por ser sábado à tarde, eu considerava meu futuro: sonhos são sonhos.

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