Um Tropeço no Século XVIII
Capítulo I
Nada no mundo acaba sendo mais íntimo, mais familiar, mais aconchegante que um salão do Starbucks às 07:00h. Aquele cheirinho de café torrado, aqueles cappuccinos fumegantes em copinhos americanos, aquele monte de gente com seus computadores sugando o Wi-Fi grátis logo no começo do dia dão realmente um tônus de grande família feliz. Grande parte desta população é de jovens com aquele porte sou-ocupado-demais-para-tomar-café-em-casa, e que se imaginam futuros executivos importantes, já que executivos importantes fecham seus negócios em cafeterias (não é?)
E lá estava eu, bebericando um café quentinho, ouvindo uma playlist melancólica, vendo a chuva cair bem fininha, normal para o padrão de São Paulo, onde o céu é quase sempre cinza. Não é à toa que a chamam de cidade da Garoa (apesar disso, poucos são os que andam com guarda-chuva). Com o laptop fechado ao meu lado, não estava fuçando meu celular com ânsia de likes nas minhas redes sociais, nem estava reunido com meus amigos em uma reunião informal; era só eu comigo mesmo, pensando e matutando: tinha descoberto recentemente que era um produto genético de pai e mãe misturado com gafanhoto.
Brincadeirinha!
(Aí seria apelação, né gente? Já tem o homem-aranha, o homem-formiga, o pantera negra. Não dá para ficar fundindo gente com o reino animal inteiro).
Na verdade, meu poder vai além de minha compreensão. E quando digo isso não é porque sou hiper power, mas porque ele é um poder estranho mesmo. Vocês já pensaram ser capazes de trazer homens de volta à vida? Pois bem, eu faço algo do gênero: sou capaz de trazer personagens de livros à vida real.
Maneiro, né?
Mais ou menos. Isso porque eu não sei como funciona. Se é quando estou com raiva, ou em um estado zen de pensamento, ou quando tenho dor de barriga (nem conto quando me dei conta que tinha trazido a Caelena Sardothian, a assassina do “Trono de vidro”, à vida. Só digo que foi muito constrangedor). Depois não sei como seleciono os heróis ou vilões. Ou como eles me encontram em uma cidade gigante como a capital paulista. A única coisa que eu tinha certeza é que eles vinham com um problemão tipo mortal e eu tinha que ajudá-los.
Recentemente eu estava de viagem para o Rio de Janeiro e bum! Apareceu o elenco todo de heróis de Rick Riordan para mim. Desde Percy Jackson até Magnus Chase, todos com suas características e poderes (acreditem: eu quase morri várias vezes quando ia separar briguinhas de namorados). E o mais difícil foi não deixá-los sair de noite: imagina um monte de gringos em vielas estreitas do Rio! Prato feito para meliantes juniores.
Enfim, o negócio não era fácil. Eu fiz um monte de amigos, gostei de dar umas surras em uns vilões aleatórios por aí, mas tinha uma seleção de mestrado para fazer e, portanto, apenas uma centena de conhecimentos duvidosos para absorver. E, para dizer a verdade, estava nervoso pra valer. Amanhã também seria o dia de entregar o meu TCC, e fazer a apresentação. Como trabalhei duro os meses anteriores, decidi pegar este domingo para uma folguinha. Aquele lance de paz consigo mesmo. Como toda essa pressão básica de salvar o mundo podia ajudar a relaxar?
Ao meu lado passou um rapaz com moletom cinza escuro de capuz. Bem, nada anormal nesse tempo sem graça da capital. Voltei atenção para meu donuts de caramelo, e pensei em dar mais uma mordida quando alguém esbarrou em mim. Meu braço tremeu e foi aplicada mais uma vez a lei dos azarados: porque meu bolinho não caiu no prato, ou ao menos na mesa? Porque teve que cair no chão, ser pisado por uma velhinha que perdeu o equilíbrio e quase caiu?
Céus, alguém facilite esses enredos.
– A senhora está bem? Me desculpe por ter derrubado o bolinho.
– Você é um mocinho muito distraído, sabia? Precisa tomar cuidado com suas coisas… olha minha idade, você acha que eu poderia sobreviver a um tombo desse? Onde estão seus pais? Vou falar com eles.
O falatório vai continuar por mais alguns minutos, mas vou poupar vocês, leitores, deste tormento.
– Ah, mas que bom que nada aconteceu, né? Até logo, senhora, até logo…
– Mas esses meninos de hoje não tem mais educação, não é? Vão logo interrompendo a gente… Ei, e cadê meu café… Esse serviço é muito demorado, não volto mais aqui…
Agradecendo por sair do foco da velhinha matadora de jovens, fui voltar para minha mesa quando notei que faltava alguma coisa.
Ah não…
AH NÃO!!!
Olhei para todos os lados da Starbucks para ver quem tinha sido o ladrão. Olhei para minha mesa de novo, dei uma voltinha, toquei na mesa para ver se meu computador não tinha se camuflado como um camaleão (eu já li um livro desses. Jesus, como consegui terminar aquele negócio de máquinas se adaptando a funções animais?), mas não tive todo esse azar. Olhei para o teto, para o caso do Venon estar por aí adiantado (Junho de 2021, no cinema. Não percam, pessoal!). Nada.
Então eu o vi. Meu queridinho estava no braço do ser de moletom de capuz. O mesmo que passou do meu lado. Possivelmente o mesmo que esbarrou em mim. Aquele vilão terrível que quer acabar com meu mundo. Eu não tinha imprimido meu TCC ainda!
– PEGA-LADRÃO!
Meu berro assustou uma dúzia de vovós do mal. Elas começaram a preparar suas broncas, mas eu saí correndo antes. O pior é que o sujeito me viu e começou a correr também. E aí começaram as origens dos crossfits urbanos.
Para minha felicidade, o ladrão acabava esbarrando em tantas pessoas como eu. Esse é o benefício de se correr em plena avenida paulista. Acho que derrubei uns três, pulei um carrinho de bebê, tropecei em um cachorro desses pequenos sem querer, mas não consegui vantagem nenhuma. O bandido corria pra valer. De repente, o sinal abriu e o sujeito passou, quase sendo atropelado. Isso me fez frear, já que não adiantava ter um TCC se eu não tivesse uma vida para apresentá-lo. Fui passando com cuidado, recebendo um monte de buzinadas, algumas derrapadas e um cheiro de embreagem queimada. Quando olhei para frente de novo, o cara tinha virado a esquerda em uma ruazinha que dava acesso a avenida. Continuei correndo, com meu fígado doendo (o que é? Estou fora de forma), peguei a esquerda, mas o homem tinha desaparecido.
Vou continuar correndo, pensei. Ele não pode ter ido longe. Vou respirar fundo, levantar a cabeça e correr até…
– O QU…
Infelizmente não fiz nessa ordem. Eu acho que meu corpo continuou correndo enquanto eu pensava; então quando abaixei a cabeça para respirar fundo, acabei batendo de frente com dois homens vestidos a rigor.
Derrubei os dois para trás, com a força do impacto, e rolei por cima deles, batendo uma porção de ossos que eu nem sabia que existiam. Fui parar perto de um telefone público.
Ótimo. Já dava para chamar minha mãe.
– Ai, Deus! Me desculpem, por favor! Os senhores estão machucados? Espera que eu os ajudo…
– Não há necessidade, jovem. Não estamos tão velhos assim. Só tome cuidado por onde anda.
O homem que falou comigo já estava se levantando, batendo o pó da roupa. Tinha um bigodinho a la anos 80. E quando digo 80 digo 1880. Tipo Revolução Industrial.
– Claramente ele foi roubado, não é? Suor na palma das mãos, pupilas dilatadas, adrenalina.
Esse era o segundo homem usando um… sobretudo?
– Cheiro de… (ele fez um gesto de quem puxava o ar com as mãos) café, não é? Aliás, roupas desconfortáveis para correr, tênis de passeio, mas não sapato? Watson, porque ele não está usando sapato? Num domingo? Ao ir a uma cafeteria?
Watson?
Oh, espera aí… não é que dei sorte grande?
– Sherlock Holmes e John Watson. Bem na hora. Vocês me dão um autógrafo?