Uma conversa na praia

Capítulo III

Fui drogado.

Sou um viciado agora.

Vão me colocar na Cracolândia das vacinas de sono instantâneo.

Tá, eu sei que não é pra tanto. Mas se eu não faço um draminha básico aqui, quem vai ler essas histórias?

Quando dei por mim, estava com a boca empapada, seca, como se tivessem enfiado duas raízes de mandioca mal-cozida, com uma pitada de banana verde. Achei que nunca mais fosse falar.

– Ah… Mauh Haum…

Meus olhos abriram-se lentamente, e percebi as cores do teto: verde-claro com um tom pastel de bege formando adornos. Era um teto renascentista? 

Descobri que eram manchas de mofo. Ou talvez maionese temperada que alguém achou engraçado jogar para o alto. As paredes eram da mesma cor do teto, com aquele tom de verde pacificador. “Talvez esteja em um hospital”. 

Puxei meu braço que parecia preso, e, de fato, ainda estava algemado no pulso, mas já fora do helicóptero. Tentei me sentar: o corpo vacilou um pouco.

– Naum hei o que me haram, ma foi uma hoa noit de hono. 

Passos. Macios, mas que raspavam de vez em quando. Mancando.

– Minho, ele acordou.

A voz era de Brenda. Firme, decidida, temperamental, inusitada.

– Tiago, você consegue me ouvir?

A sonolência passava rápido. Alguém aproximou um tubinho dos meus lábios, e eu senti um líquido doce e morno descendo pela garganta, fazendo maravilhas com o deserto do Atacama que eram minhas cordas vocais.

Criei coragem para abrir meus olhos de vez.

E lá estavam eles. 

Me olhando.

Me encarando.

Minho estava com uma caixinha de leite na mão.

– E aí, cara? Desculpa o sonífero, mas era necessário, tá?

Meus neurônios deram uma pequena bugada quando me levantei, ajudado por Brenda.

– Bom, não sei se entenderam o que eu disse antes, mas obrigado pelo sono mais profundo da minha vida.

– Engraçado ele!

O sorriso de Brenda estava mais para um: “vou te encher de paulada se você continuar assim” do que qualquer coisa mais pacífica.

– Onde estou? E como vocês acertaram meu nome?

– Primeiro, revistamos seus bolsos, achamos sua carteira, vimos sua carta de motorista.

Eu fiquei contente de não ter perdido meus documentos na correria passada a uns capítulos atrás. 

– Enquanto onde você está, o que precisa saber é que estamos seguros.

Olhei as instalações modernas do meu hospital improvisado, os instrumentos que havia ao meu redor e puxei o ar com força. O cheiro de maresia veio calmo e intenso.

– Estamos na nova clareira, não é?

Minho arregalou os olhos de um jeito que eu, devo dizer, a parte de todo preconceito, não achava possível.

Brenda apenas me deu as costas, jogando as luvas que me tatearam assim que acordei para ver se estava tudo bem.

– Eu ainda não sei como você sabe tanto sobre nós, mas cansei de tentar descobrir.

– Eu não. Se você não é do CRUEL, como pode ser o único bem no meio de toda aquela situação?

Ficamos em silêncio enquanto Breda punha uns instrumentos para esterilizar. 

– É complicado. Conseguiram provar que não tenho fulgor?

Minho parecia que tinha mais coisas a dizer sobre a minha resposta, não se dando por satisfeito, mas Brenda lhe mandou um olhar do tipo perigoso, o que fez ele botar as mãos no bolso, estufando as veias dos seus braços potentes.

– Fizemos os testes possíveis. E, considerando que você já passou 11h aqui…

– Espera?! Eu o quê?!

Ela sorriu, debochada.

– A anestesia era forte, mas o seu sono foi longo porque você devia estar bem cansado. Não consigo imaginar o porquê.

Ignorei-a. Pra falar a verdade, eu não entendi bem o que ela quis dizer. Mas eu sabia que as férias tinham sido para descansar da minha vida acadêmica. Não era difícil que meu cérebro tivesse aproveitado esse sonífero para desligar horas a mais.

– Então por que ainda estou preso?

– Ora, você ainda é um suspeito, não é?

Ela se aproximou com uma chave girando na mão. 

Minho retesou ainda mais os braços.

– Vamos soltar você, mas nada de gracinhas. Minho anda mais rápido do que você alguma vez já correu na vida, e tem um murro bem potente. 

– Janson que o diga.

Eles pararam. A respiração de Minho saiu mais acelerada, mas Brenda ergueu a mão à altura do seu rosto.

– Minho, se você não vai se controlar, preciso que você saia.

Ele pareceu murmurar algo, mas foi embora arrastando os pés. 

– Você não causou uma boa primeira impressão, Tiago.

A moça me soltou, e, enquanto eu massageava o pulso, foi até o canto e tirou um jaleco. Estava com uma calça tipo leg, um top amarelo-limão, que ressaltava o âmbar dos seus olhos.

– Olha, Brenda, eu não quero criar…

– Tiago, sinceramente? Não preciso que reporte qualquer coisa a mim. Thomas espera na pedra central. Ele quer falar com você.

– Desde quando vocês terminaram?

Mesmo falando baixinho, eu a surpreendi. E foi ótimo ver ela de queixo caído (poder meganerd, arrebentando amigos e inimigos). 

– Como…

– Fica tranquila, eu não sabia até agora. 

Ela olhou para os sapatos, e coçou a mão direita, como se fosse pra aliviar a coceira da alma.

– Não faz muito tempo. Mas ele carrega uma culpa que torna tudo difícil, e isso desde o começo.

– Ok, obrigado por me contar essa coisinha. Tá difícil para você, né?

Ela levantou os olhos, agora marejados.

– Aha. 

Secou-os com o dorso da mão, se restabelecendo rápido como uma lutadora.

– Agora vai, sai da minha frente.

Apenas dei meia volta, me dirigindo à saída.

***

Thomas estava sentado de frente para o mar, contemplando as ondas revoltas. Suas pernas magras e longas estavam esticadas para frente.

– Então acordou.

– É.

– Boa corrida lá na cidade.

– Valeu.

A brisa passou pelos meus cabelos meio molhados de suor da corrida que o sono havia desmontado e amassado.

– A CRUEL desenvolveu uma arma que planejava utilizar contra os cranks. Por incrível que pareça, era uma arma que não fazia mal, não tinha contraindicações. 

Deixei o silêncio agir entre nós, para que ele continuasse a me contar o que quer que fosse.

– Era uma pistola propulsionadora de sinapses. Ela devia ser usada contra alguém que estivesse no último estágio de fulgor, obrigando seu cérebro a funcionar de novo. Era mais ou menos como um motor elétrico potente. Incrível como consigo me lembrar dos carros.

Atrás de nós vieram gargalhadas gostosas, acompanhada de um ótimo cheiro de molho de tomate.

– Você fez um ótimo trabalho aqui, Thomas.

Ele fez um high-five com a mão.

– Mas não funcionou nos crancks, pois os cérebros deles estavam mortos, infectados. Foi quando a CRUEL deixou de estudar uma cura ativa para fazer os testes conosco, e ver se saía daí alguma esperança. Uns testes que eu e a…

A voz dele falhou.

– Enfim, nós roubamos essa arma, e o Gabby teve a ideia de fazer algo inverso: não provocar sinapses, mas captá-las. 

Então eu entendi.

– Vocês preparam um radar de sinapses, não é?

Ele assentiu sem olhar para mim.

– Nós postamos em alguns lugares do continente próximos de nós, depois dos testes, para verificar se, da natureza dos crancks, depois de tantas metamorfoses, pudesse haver algo ainda saudável.

Uma gaivota circulou o céu acima de nós, fazendo com que olhássemos, cada um arranjando tempo para fazer as perguntas certas.

– Aí é que você entra, Tiago. No começo, o radar acusou uma quantidade de sinapses suficiente para uma pessoa. Você não sabe a alegria que se passou por aqui. Depois de alguns anos de nossa mudança para cá, sabendo que éramos os continuadores da humanidade, descobrir que ainda havia alguém lá fora, saudável, pensante. Mas, já na tarde seguinte onde planejávamos uma atividade de reconhecimento e resgate, o radar apitou como louco! A quantidade de sinapses foi tanta que ele não aguentou e quebrou. Era um bairro, talvez uma cidade de seres humanos. Como era possível?

Comecei a escavar a areia. Eu não tinha ideia do que havia acontecido.

– Ajeitamos o resgate, começamos a jornada, mas quando chegamos ao lugar, só encontrávamos crancks! Habilitamos de novo o radar de sinapses, e lá estava, apenas uma mente pensante.

– Eu.

Ele se virou para mim, pela primeira vez desde o começo da conversa.

– E então? Quem é você nessa história toda.

Suspirei. 

– Eu também.

Como eu podia estar cercado de pessoas bem e saudáveis em um segundo e no outro ter a humanidade inteira como cranck ao meu redor? Não fazia o mínimo sentido.

– Então estamos no mesmo lugar, Tiago. Nenhum dos dois sabe coisa alguma desse mistério chamado existência. Vou pedir que arrumem suas coisas para que você possa morar aqui.

Apesar de eu achar um pouco exagerado, não discuti.

– Thomas.

Ele se voltou para mim, ligeiramente carrancudo, triste, pesado.

– A morte de Teresa não foi sua culpa.

Ele tremeu, abaixando o queixo.

– Eu sei, não me pergunte como. As mortes que você vem tentando carregar não deveriam prender você. Chuck, Newt, Teresa, todos eles foram vítimas…

– De quem, Tiago, de quem? Quem ajudou a projetar o labirinto? Quem selecionou as provas? Quem ajudou nos testes?

Ele não parecia bravo, somente cansado.

– Tá, o seu passado é muito conturbado, mas eu acho que você aprendeu muito de lá pra cá. A gente não pode mudar as escolhas do passado, mas pode fazer o certo agora. E parece que é o que você vem fazendo.

Levantei-me e apontei para todo o acampamento fixo estabelecido ali. 

– Vou pensar nisso.

– Espero que sim. Foi o que você leu a carta da Teresa, não é? Ela pediu que você ficasse em paz.

Ele me deu nas costas e começou a caminhar em direção ao fogão a lenha que tinham construído.

– Ah, e eu sei que você gosta demais da Brenda, tá? Ela também carrega o peso das decisões delas. Seja sincero com você, cara, e verá o que deve fazer.

Ele continuou indo. 

Eu não.

Fiquei de frente para as ondas, procurando entender tudo o que eu perdi.

Comentários