O mundo continua

Dia V

A gente percebe como é pequeno quando se dá conta do tamanho do mundo. Quando chega aquele estado de frustração geral e o sentimento de que tudo vai dando errado pra nós, e mesmo assim, o mundo continua rodando. Bilhões de seres vivos ainda cruzam esta rua, dezenas de milhões andam por esta rodovia. Na frente, num plano distante, há vários prédios, e se estão cheios de pessoinhas como nós que talvez estejam machucadas pela vida, também possuem várias que se sentem premiadas pela loteria do destino. Mais longe ainda está a lua, branca brilhante; e quem sabe quantos ela viu se matarem por seus problemas, ou jurarem amor eterno a seus amados? 

Tentei tirar uma foto; ficou bem ruim, típico de minha situação. Numa vaga distante de um shopping gigante, estava eu tomando coragem pra encarar o resto de minha existência. Lembram-se daqueles filmes antigos, onde o personagem vivia muitas aventuras, sejam elas dramáticas, românticas ou de ação? No final de tudo, o carinha principal ia tomar um banho quente, e, lentamente, a câmera ia se afastando, e uma musiquinha melancólica começava a soar cada vez mais alto. E fim. O filme terminava.

Meu sonho, de vez em quando, era este. Quando estivesse sufocado pelas agruras da vida, queria entrar debaixo de um chuveiro e… preto. Que subissem as letrinhas de agradecimento. Mas você, meu velho amigo, sabe bem tanto como eu que isso não existe. Ou a gente enfrenta, ou a gente enfrenta. Fugir não é uma opção.

Nossa, cara, estou na maior deprê hoje, né? 

Julguem-me vocês. Tinha um encontro marcado, e a menina me deu um calote; fiz um simulado pro meu vestibular e descobri que não sabia nada; recentemente já tinha percebido que a física, algo no qual me destaquei a vida inteira, era a matéria que eu menos entendia. Não tinha amigos, porque era novo na cidade, e não tinha pra onde ir, porque estava sem dinheiro. Restavam-me somente oito reais, e com eles eu ia pagar o estacionamento. E, nessa hora, quando desejei o fim do mundo, percebi o quanto estava longe dele. Porque o mundo continuava; via pessoas felizes passando na frente do carro, famílias com crianças bagunceiras, namorados apaixonados, namorados emburrados, trabalhadores e até japoneses se divertindo. Cara, se os japoneses estavam sorrindo e gracejando, eu deveria sorrir também.

Quando o calor da resignação estava subindo no meu peito, e eu estava dando o meu ‘Foda-se’ pro universo, o celular apitou. Match no Tinder.

Viviane. 23 anos, bem bonita. Cabelos pretos, longos e lisos, sorriso fácil, sobrancelhas finas. É uma descrição longa de presente.

“Vinhos com séries?

Vamos esquecer o passado

Falar de metas para o presente

Futuro relaxa q é comigo

Se tem criatividade já é meio caminho andado

Sou legal. Não mordo.”

Eu simplesmente amo pessoas que tem lista de critérios no Tinder. Tira aquela sensação de que você está conversando com uma embalagem vazia. Já me animei um pouquinho mais ao começar a conversa.

“Oii Viviane! Moça, vc é criteriosa, hein?”

“Vc sabe o que quer esperar dos outros pq sabe o que esperar de si. Inteligente, madura e bonita kkkk”

“Gosto de pessoas assim”

E aí, povo? Fiz um bom trabalho? Agora tinha que deixar marinar, e esperar ela ler pra respond…

Novo apito. Tinder de novo. 

“Oiii Tiago!”

“Éh, sou meio assim mesmo kkk”

“Legal, gostaria de conhecer vc melhor”

Uau! Foi bem rápido.

“Ganhei pontos pela minha criatividade, Viviane?”

“kkkkk. Ganhou sim, Tiago”

Vou continuar, já que não tenho nada pra fazer mesmo.

“Vivi, vc mora perto do Shopping? Aqui diz q estou a menos de 1 km de distância”

“Sim, estamos próximos, Tiago. Peraí: Não me diga q vc está aqui TB?”

Eu estava reclamando da vida até agora… Por que mesmo? Ah, não importa! Match a vista!

“Estou sim! Q coincidência! Juro q não estou te vigiando kkk!”

“Kkkkkkkk Olha olha hein”

“Vc veio assistir um filme, Vivi?”

Fiquei com o olhar vidrado no celular, esperando a resposta dela, pra eu poder fazer aquele convite especial. 

Mas ela nunca veio.

Quer dizer, nos primeiros cinco minutos que fiquei no carro; porque, confiante com um sucesso aparente, já estava eu caminhando pras portas automáticas do shopping.

Pessoal, tenho que dizer pra vocês que eu andei e andei. Na tentativa de trombar com a querida Vivi. Depois de 01h30min circulando, eu desisti. Como achar uma agulha num palheiro? E convenhamos: as mulheres podem ficar muito diferente das fotos, graças a maquiagem, roupas e ângulos. (os homens também, mas não estou falando deles agora.)

Apesar de cansado, quando eu me sentei num daqueles banquinhos de madeira dos corredores, já não estava mais tão arrasado. Esse suposto contato com Viviane e essa perspectiva de que tudo pode melhorar em apenas um momento me animou de verdade. Ainda estava um pouco chateado pelas coisas que tinham acontecido, mas uma pitada de atenção e 700 ml de milk-shake do Bob’s fazem maravilhas.

Na minha frente, muitos casaisinhos viam as lojas. Poucos compravam, mas todos eles pareciam bem contentes. Nada como o desejo consumista posto em evidência pra satisfazer o coração.

– Tiago?!

Virei-me para ver o interlocutor, e: Cabelos longos e lisos, sorriso fácil, sobrancelhas finas. Dá pra acreditar?

– Meu Deus! Viviane?! 

– Cara! É você mesmo!

Ela veio e se sentou do meu lado, me abraçando e dando um beijinho no rosto. 

– Não é que você está aqui mesmo?! Eu pensei que você estivesse puxando meu saco!

– Nossa. Não sei que resultados eu conseguiria com isso.

– Verdade. Mas o que importa é que estamos aqui! Você veio com amigos?

– Nãããão… Eles estão ocupados em festas hoje.

– Os meus também! Nossa sintonia é grande, né? Vim pra assistir um filme, depois fiquei passeando por aí.

– Não me diga, Viviane! Somos um par de solitários… que conveniente!

– O que você quer dizer por “conveniente?”

– Nada de mais! Quero dizer uma coisa boa… é… boa e amigável, inocente e tal, hehe.

Risos.

– Tiago, você é como nas fotos, sabia? Te reconheci na hora.

– Você não, Viviane. Você é bem mais bonita ao vivo.

– Ai, menino esperto! Mas saiba que não vai me ganhar só com elogios! O que aconteceu com o Vivi de mais cedo?

– Ah, estava esperando você me dar essa intimidade… Vivi.

Ela deu um sorriso que aclarava ainda mais seus olhos. Com uma espécie de suéter por cima da blusa branca, e com sua calça de leging vermelha, Viviane parecia simples: simplesmente linda.

– E você, Ti (olha o carinho!), o que veio fazer aqui?

– Pra dizer a verdade, vim esfriar a cabeça. Pensar.

– Num shopping? Cheio de gente?

Ela estava sentada virada pra mim, sobre uma das pernas. Eu cheguei um pouco mais perto, colando minha coxa no joelho dela. Ela disfarçou um sorrisinho.

– Sabe, eu estava com uma baita frustração. Quando a gente percebe que está bem mal na vida.

– Sei… dias assim são complicados, né? Mas não entendi onde o shopping entra na equação, Tiago. Tiago?

Fui alienado um minuto pela beleza dela. A pele tinha cor de espuma de café, e o cabelo descia em uma cascata pelo ombro, com uma franjinha que tinha sido jogada pra cima, deixando sua testa a mostra.

– Tiago? Pare de me olhar assim, que fico sem graça! 

Mas Vivi ria, um sinal de que estava gostando.

– Desculpa, sério, não foi por mal… bom, você me perguntou o porquê do shopping. Enquanto sentia muita tristeza e etc., percebi que o mundo continuava a girar. As pessoas ainda eram felizes com eu sendo, por uns momentos, infeliz. Então decidi vir olhar o movimento do universo, ver reações, sorrisos, carinho e amor. Alguma coisa deles deveria passar pra mim, não?

– Tiago, isso foi muito sábio. Queria ter essa maturidade.

Ela colocou a mão dela por cima da minha, que estava apoiada no joelho. Como resposta, eu a apertei com delicadeza.

– Obrigado, Vivi, mas você é muito mais madura que eu. Já falei que gosto de pessoas criteriosas?

Ela riu novamente.

– Sim, Ti, falou quando nos conhecemos pelo Tinder. Gostei muito, obrigada.

– Que isso; essa é você. Toda especial, carinhosa, inteligente, bonita…

– Tiago, isso não vai dar certo…

– Então porque você está sorrindo? 

Ela abaixou os olhos. Quando pudemos nos fitar de novo, havia um brilhozinho ali de contentamento.

– Então, o que vamos fazer, Ti? Quer dar uma volta por aí?

– Tenho uma ideia melhor.

Antes que desse tempo pra ela respirar, me debrucei sobre ela num beijo. Senti seu fôlego, quando ela foi pega de surpresa, e, como sempre, os ruídos pararam. O mundo silenciou. Apenas o som de Vivi deliciada me chegava aos ouvidos, e seus cabelos macios passavam pela minha mão direita enquanto acariciava sua nuca. Ela tentou falar alguma coisa, mas parou quando meu braço esquerdo passou pela cintura dela e a puxou mais para perto de mim. Ótimo: Vivi tinha um leve cheiro de cereja. 

***

Quando fui para o carro, não era a mesma pessoa que chegou. Meu ar de satisfação com a vida era mais que visível. Não tinha conseguido encontrar a Viviane, talvez porque ela tinha entrado pra ver uma nova sessão. Isto explicaria o porquê dela não ter me respondido. Ou, quem sabe, ela não tinha interesse mesmo. Acontece.

Mas isso não poderia me abalar. Eu sei que, dependendo do dia, das minhas motivações, das minhas necessidades, entraria de novo em uma deprê básica; assim sou eu. 

Esse dia não seria hoje, porém. 

Ter circulado pelo shopping também não foi mal. Como estava na minha vibe de filósofo, tudo ajudava pras minhas considerações. E uma frase de um livro que há muito li ficou na minha memória: “Agora, vamos nos deitar e dormir. Amanhã, todos seremos pessoas melhores”.

Dei seta pra esquerda e saí com o carro. A estrada estava livre e desimpedida à minha frente.

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